'Já vi muitas epidemias, mas nada assim', diz médica sobre microcefalia

Camilla Costa – @_camillacosta
Da BBC Brasil em São Paulo
Pesquisadores investigam possível relação dos casos de microcefalia com o zika vírus; se comprovada, seria a primeira vez no mundo. Reprodução

A infectologista pediátrica pernambucana Maria Angela Rocha, de 67 anos, acompanhou desde o início a epidemia de microcefalia que agora assusta o país. Ela é coordenadora do setor do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (HUOC), em Recife, que tem concentrado a maior parte do atendimento aos bebês com a má-formação no Estado.

Pernambuco, que já tem quase 500 casos notificados neste ano, foi o primeiro Estado a avisar oficialmente o Ministério da Saúde sobre o problema, que tem sido associado ao zika vírus, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, responsável também pela dengue. No Brasil, já são mais de 700 casos notificados em 160 municípios de nove Estados, especialmente da região Nordeste.
Confira o depoimento da médica à BBC Brasil:
“O serviço que coordeno é um serviço de referência em infecções congênitas. Para nós, tudo começou no finalzinho de agosto e começo de setembro. Nos últimos dias de agosto começaram a chegar três, quatro casos (de bebês com microcefalia) encaminhados por neurologistas. Antes, passávamos meses sem ver um caso. O Estado tinha uma média de nove casos por ano.
Ficávamos nos perguntando: ‘o que será que está acontecendo?’. Mas quando, no final de setembro, começou a aumentar a procura, foi quase desesperador. Nos chocou, porque todo dia chegavam casos. Tomamos consciência de que a coisa tinha uma proporção que não estávamos esperando. No dia 27 de outubro, fizemos a notificação ao Estado e ao Ministério da Saúde.
Nosso ambulatório já estava lotado e agora está superlotado, porque em princípio temos que acolher todas as crianças. E como somos um serviço de referência, há muitas.
O Estado está descentralizando o atendimento também para três cidades no interior, mais distantes, que poderão seguir o protocolo que estamos seguindo e fazer os mesmos exames. Apesar das suspeitas (de associação com o zika vírus), temos que fazer uma investigação bem isenta.
Esses casos normalmente vêm para nós para sabermos qual o agente causador e acabam sendo acompanhados pelos neurologistas. Dos 487 casos notificados em Pernambuco, estamos avaliando cerca de 100 no momento. Nossa equipe toda está envolvida.
Quando os bebês nascem, os médicos que fazem o primeiro atendimento na maternidade medem perímetro encefálico (medida de contorno da cabeça da criança em sua parte maior), peso, comprimento, etc. E tudo isso fica marcado na carteirinha do bebê. Consideramos microcefalia o perímetro igual ou menor do que 33 cm. O normal para um bebê recém-nascido é entre 34 cm e 37 cm, a depender da idade gestacional (em que semana da gestação o bebê nasce).
Quando o pediatra alerta que a criança está com a cabeça menor do que esperada para a idade, ele encaminha para nós. Mas também há muita demanda espontânea. Mães que não tinham percebido problemas e, quando viram as comunicações do Estado, vieram nos procurar.
Isso porque inicialmente estas crianças estão passando bem, não ficam internadas. Elas estão mamando e ativas.
Crianças com cabeças no limite de 33 cm podem não ter lesões. Isso é a tomografia que vai definir. Geralmente, as que têm um perímetro abaixo de 32 cm têm.
Cicatrizes no cérebro
A primeira coisa que fazemos é conferir a cabeça da criança e conversar com a mãe, detalhar como foi o parto, se ela usou drogas lícitas ou ilícitas, medicamentos, se fumou, se teve alguma doença, etc. Em paralelo, pedimos a tomografia e os exames de sangue da criança. A partir daí avaliamos os resultados.
Infectologista coordena serviço que investiga casos de microcefalia em hospital de Recife
A tomografia é a ‘foto’ do que aconteceu com o cérebro. Quando ocorre um processo de infecção, que é o que suspeitamos – geralmente entre o primeiro e o quarto mês de gestação –, o agente causador da infecção provoca um processo inflamatório que deixa cicatrizes no cérebro do bebê, que são as calcificações.
É como se essas calcificações – que podem ser maiores ou menores e estar em vários lugares do órgão – prendessem o cérebro. Aquelas áreas estão mortas, calcificadas. O cérebro não consegue crescer bem, cresce desorganizadamente, e outros problemas em sua estrutura aparecem. Quanto mais calcificações, mais desorganizado é este crescimento.
Estamos vendo tomografias muito alteradas, com calcificações extensas. Mas pode haver áreas do cérebro mais afetadas que outras. Cada criança vai ter um tipo de comprometimento a depender de como seu cérebro foi atingido.
Por isso, a criança precisa ser acompanhada por um neurologista por toda a vida. As que têm sequelas mais importantes podem ter convulsões de difícil controle, precisam tomar medicações específicas.
De qualquer forma, elas terão algum grau de comprometimento, mesmo que seja menor. Também podem ter coisas graves, como não falar, não andar e ter todo o desenvolvimento psicomotor alterado.
O importante é a estimulação precoce. Na hora em que ela é diagnosticada, precisa ser acompanhada não só pelo neurologista, mas também ir para a fisioterapia, fonoaudiologia. Pode haver áreas do cérebro que não estão tão lesadas e, com estímulo, se consegue muita coisa.
Mas as famílias vão ter que lidar com isso a vida inteira, com maior ou menor intensidade.
Quanto menor for perímetro encefálico, já entendemos que mais lesões aconteceram, que o cérebro foi atingido precocemente e não conseguiu crescer. Temos muitas crianças com a cabeça bem pequena: 27 cm, 28 cm, 29 cm. Ainda não temos todos os exames, mas pela nossa observação, a maioria parece estar entre 28 cm e 30 cm.
‘Geração prejudicada’
Assumi o serviço de infectologia (do HUOC) há mais de 20 anos. Já vi a pólio lá atrás, o cólera, o (vírus da gripe) H1N1, surtos de difteria e de sarampo. Mas não vi nada desse jeito e com essas consequências, é bem inusitado.
São sequelas importantes e nas quais não conseguimos interferir muito. Quando a gente vê a microcefalia, tenta estimular (a criança) e diminuir o processo, mas é diferente de um surto de sarampo, em que é possível bloquear com vacina, e do cólera, em que podíamos tratar o vibrião. Lógico que era difícil, pessoas morriam, mas tínhamos maneiras mais eficientes de conter.
Se realmente houver ligação com o vetor (mosquito que transmite a doença), a dificuldade de combater é muito grande, sem uma vacina específica. Isso me causa muita preocupação. Sabemos dificuldade que temos de combater vetor no Brasil. A dengue até hoje não conseguimos.
Agora, uma geração está prejudicada, com sequelas. É uma coisa muito séria. E a gente sabe dos problemas emocionais, sociais e econômicos que isso vai causar, da repercussão disso durante muito tempo e, para aquelas famílias, durante toda a vida da criança.
Saiba mais no site da BBC

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