O comprador de queijo cuia
No supermercado, entre gôndolas, odores e vigilância cerrada dos olhos-mágicos das câmeras de segurança, me deparo com duas variedades de queijo de reino, essa preciosidade que atravessou século desde que chegou ao Brasil para saciar o refinado apetite da família real e dos nobres portugueses. Era sinal de status.
No Brasil da hiperinflação dos últimos tempos, os queijos do reino, cuja embalagem mais tradicional é a de lata em formato de cuia, geralmente vermelha, se tornaram mais proibitivos ainda para bolsos mais desabonados. Pobre, então, não sente nem o cheiro. A embalagem metálica é indevassável e o queijo vem envolto em recipiente plástico. Só mete o nariz quem pode.
Começo a sorrir sem avançar ao riso e muito menos à gargalhada para não correr o risco de um doutor passante no supermercado mandar me internar com a urgência que o caso requer. Há muito tempo, esses queijos especiais deixaram de fazer parte da lista de supérfluos da combalida e politicamente equivocada classe média, que migrou para os mais populares. E olhe lá.
Sem grande DNA filosófico, o motivo do riso diante de sua realeza veio da lembrança de que em certa época do Brasil e da Amazônia da borracha, o queijo do reino era vendido do jeitinho que aparece aí na foto em comércios populares das cidades e por regatões que cruzavam os rios da região levando suprimentos e novidades aos paladares de quem podia comprar. Misture isso aí de cima com uma anedota cabocla que vai abaixo para descobrir a genética do riso.
Um pescador freava a canoa todas as vezes que passava em frente ao comércio mais sortido da ilha. O comerciante espichava o olho lá do trapiche de sua empresa.
– Seu Raimundo, tem queijo cuia?!!
– Não!!
Um ritual. Era o pescador passar por lá e perguntava se havia queijo cuia.
Certo dia, o regatão encostou no comércio e seu Raimundo lembrou.
– Vosmecê tem queijo cuia. Tenho um freguês certo para o produto.
Tinha. E era caro, preveniu o regatão.
Os olhos do seu Raimundo brilharam.
No dia seguinte, o pescador fez maresia no rio, reduzindo as remadas.
– Seu Raimundo, tem queijo cuia?
– Hoje eu tenho – respondeu todo felizão o comerciante.
– ‘Pus’ quando o senhor vender, guarde a cuia pra mim tirar água da canoa.
E tacou remo no estirão, sumindo na curva do rio.
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Euclides Farias é jornalista, 59 anos de idade e 40 de profissão exercida nos jornais Marco Zero (AP), O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados (ANDA), Rádio Cultura, Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde. É editor de coluna no Diário do Pará.