Iran de Souza: A última do Euclides

Ei, amigo, nem te conto a última do Euclides. Pensando bem, vou te contar. Quarta-feira passada, na hora exata do enterro dele, lá pelas cinco da tarde, caiu uma chuva daquelas, mano, um pé d’água dos seiscentos. Não vou dizer pra ti que tenha sido uma chuva danada, lascada ou amaldiçoada. Nã-nã-não. Foi benquista; homenagem dos deuses do tempo –– a derradeira –– ao nosso velho e bom camarada que, vindo do pó da terra há cinquenta e nove anos e uns quebrados, quase sessenta, ao pó da terra voltava.

Tu dizes que estou fazendo nariz de cera. Insistes em saber qual há de ter sido, de fato e sem delongas, a última do Euclides. Mas ainda não entendeste? Égua, meu prezado, tu és mais lento que um virginiano. Então venha cá, aprochegue-se; vou dizer à boca pequena; só num vá dar com a língua nos dentes por aí; o que mais tem neste mundo é maledicente e incréu: o pé d’água, aquele aguaceiro tremendo com fartura de vento, trovão, raio e relâmpago em pleno funeral, teve o dedo do próprio Euclides. Se tu duvidas, o problema é teu. Estou dizendo que teve.

Escute a minha tese. Vou falar uma vez só. Sei que és um católico apostólico romano de meia-tigela, mas deves lembrar que São Pedro é mais que o patrono da chuva, é também o padroeiro dos pescadores. E o Euclides, além de jornalista considerado, era pescador tarimbado. Lançava tão bem o anzol em rios e açudes para içar tucunarés e tambaquis como guindava as palavras, do mar cabuloso da língua, para escrever os textos estilosos e suculentos que publicava aqui no Diário do Pará. Caboco bom, o Euclides, tu sabes que ele era.

Pois é, voltando a São Pedro, tenho cá pra mim que ele e o Euclides eram chegados. Confabulavam. Tramavam em surdina. Divertiam-se contando causos da terra e do céu um pro outro. As pilhérias do Euclides faziam São Pedro rir até ficar com soluço. O santo gratificava o camarada bom de conversa com pescados espadaúdos nos igarapés de Castanhal e na costa do Salgado. Posso até ver os dois tête-à-tête, arteiros, as bochechas infladas de riso, o olhar cúmplice como sói acontecer entre amigos de antanho.

E tu nem sabes: o São Pedro íntimo do Euclides é aquele um do Evangelho Segundo o Caboclo, de quem o padre Giovanni Gallo fala em sua célebre crônica, e que, por não ter alcançado –– ainda não –– a total santidade, é santo só pela metade. Ele mesmo, São Pedro Safadinho, o do folclore marajoara. Agora só falta tu alegares, a esta altura da minha prosa, que o Euclides nem era do Marajó. Besteira, rapá! Esqueces que ele era do Amapá, ali defronte?

Eu tenho certeza de que, momentos antes do passamento do Euclides, ele e São Pedro Safadinho aprontaram a última juntos; combinaram o temporal para o instante do sepultamento. Minucioso como um relojoeiro, o Euclides pediu ao santo que os primeiros pingos só caíssem quando o cortejo estivesse a cinco metros da sepultura onde ele dormirá, na santa paz, o sono dos justos. E assim foi. E foi chuva, camarada, foi chuva. Foi chuva de inverno em altíssimo verão. Foi chuva de lavar e enxaguar a região metropolitana. De afogar sapo. De encharcar roupa e sapato. Debaixo do toldo do cemitério, parentes e amigos ficamos ensopados até as roupas de baixo. A própria batina do padre encharcou-se; até agora deve estar escorrendo no varal. Naquele concerto dodecafônico, embora de todo amazônico, nada mais se ouvia. O tenor da tempestade abafou tudo; o desconsolo da irmã e a dor dos filhos; até o pranto da viúva, a doce Danielle. Nem mesmo o lugar-tenente do divino e do Francisco pôde dar a última das últimas bençãos. Não deu pra dizer mais um adeus que fosse. Ninguém escutaria. Eu mesmo retive na garganta o brevíssimo panegírico que ensaiara ao volante do carro, a caminho do cemitério.

Foi tanta água, rapá, mas tanta água, que só faltou emergirem peixes do ar superúmido, esvoaçando pra cá e pra lá, como no livro do García Márquez. É verdade que o Euclides não teria nada contra o espetáculo; com mais uma ajudinha milagrosa de São Pedro, era capaz de ele ainda fisgar um ou dois pra assar de brasa no céu. De quebra, também levaria Cem anos de solidão pra reler no paraíso. Não que eu ache que ele vá amargar solitude lá. Num vai não. São Pedro Safadinho estará sempre perto de seu parceiro; e os dois hão de aprontar, eu sei; e hão de pescar todo mau humor que houver no andar de cima –– se houver –– e transformá-lo em puro riso.

Como posso estar certo de que as coisas se deram exatamente assim? Deixe de ser cabeçudo, homem; eu conhecia bem aquela figura chamada Euclides Farias de Almeida. Éramos mais que amigos. Éramos compadres. Tratávamo-nos, em dialeto caboquês, como meu cumpadi. Sou padrinho do Danilo –– aliás, o melhor texto do Euclides; moço de fina estampa, sereno, safo, sangue bom como o pai.

Entendeste agora qual foi a última do Euclides? O sacana pediu a São Pedro Safadinho que desse um banho na gente. Um banho de chuva grossa pra refrescar a tristeza e pra aliviar a saudade que ele deixou.

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