Novo ensino médio exige forte mudança na mentalidade do brasileiro, diz responsável por projeto pioneiro

O Serviço Social da Indústria (SESI) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) iniciaram uma das experiências pedagógicas pioneiras no Brasil de implantação do novo ensino médio. Ao final de três anos, os alunos terão dois diplomas: de conclusão do ensino médio e de técnico em Eletrotécnica.

Nesta entrevista à Agência CNI de Notícias, o gerente-executivo de Educação do SESI, Sérgio Gotti, fala sobre os desafios de construção e implementação do novo modelo, especialmente de um currículo integrado por áreas de conhecimento e não mais por disciplinas.

Para Gotti, a Lei 13.415/2017 implanta mais do que um novo formato nessa fase escolar. É uma “mudança fortíssima de paradigma que obriga todos a terem um pensamento não mais compartimentado por caixas”. O projeto trabalha com competências e habilidades, na construção de cidadãos com capacidade de pensar de forma ampla e crítica diante dos desafios de um mundo em profunda transformação tecnológica.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Por que o SESI e o SENAI decidiram fazer essa experiência pedagógica, que é uma das pioneiras no Brasil?

SÉRGIO GOTTI – O SESI e o SENAI já têm uma parceria de 18 anos nas escolas, executando a educação básica articulada com a educação profissional, que chamamos de Ebep. Em um período do dia, o aluno está na escola do SESI da educação básica e, no outro turno, faz o curso de educação profissional do SENAI. Essa é uma política já consolidada no Sistema Indústria e que existe em 23 estados.

Quando surgiu a nova lei do ensino médio, que tem o itinerário da formação técnica e profissional, o itinerário 5, percebemos que o SESI  e o SENAI conseguiriam integrar o currículo com muita propriedade e agilidade. O Sistema Indústria, por estar em todo o Brasil e com a experiência do Ebep, talvez seja a rede com as melhores condições de implantar o novo ensino médio no país.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Qual é a diferença primordial da experiência pedagógica do novo ensino médio para o Ebep?

SÉRGIO GOTTI – O Ebep trabalha em uma visão articulada, uma visão concomitante, do currículo. O novo ensino médio prevê realmente uma integração. Então a matemática e a física, por exemplo, falam muito melhor com a educação profissional, evitando superposição ou repetição de habilidades. Além disso, estamos trabalhando por áreas de conhecimento e não mais por disciplinas, o que é um ganho enorme, porque é muito difícil na atualidade alguém pensar dentro de caixinhas. Ou seja, é uma mudança fortíssima de paradigma que obriga todos a terem um pensamento não mais compartimentado por caixa, de que cada um cuida apenas de seu espaço sem se importar com o que acontece com as demais áreas.

Além disso, ainda é muito difícil que o professor da educação básica e da educação profissional planejem juntos com uma visão total da educação. E é um desafio enorme para todos nós.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Como foi construída a experiência pedagógica do SESI e do SENAI?

SÉRGIO GOTTI – Inicialmente, é preciso deixar claro que o SESI e o SENAI não estão fazendo um projeto-piloto, que é restrito, tem início, meio e fim. Trata-se de uma experiência pedagógica. O rico e o mais interessante dessa proposta é que a sua construção contou com a participação de grandes especialistas renomados da educação brasileira, como Cláudio Moura e Castro, Guiomar Namo de Mello, Genuíno Bordignon (da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), que estão conosco nessa interpretação teórica do projeto, e foi elaborada por especialistas e professores de ambas as redes, SESI e SENAI, sentando juntos para pensar no currículo integrado: quais são as verdadeiras necessidades para a educação profissional, mais especificamente, na área industrial de Energia e na habilitação técnica em Eletrotécnica.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – É necessário, então, construir um currículo específico de ensino médio para cada formação técnica e profissional que for oferecida?

SÉRGIO GOTTI – Sim, é a realidade e é o rico desse novo ensino médio. Não é simples, é uma mudança de estrutura fortíssima. É uma mudança enorme na forma de concepção de projeto pedagógico.

A atual experiência pedagógica é na área de Energia e na habilitação técnica em Eletrotécnica, mas nós queremos ampliar nossa atuação para atender a pelo menos outras 9 áreas industriais, além dos itinerários formativos de Matemática e suas Tecnologias e Ciências da Natureza e suas Tecnologias, que são fundamentais para o fortalecimento do trabalho em STEAM (sigla em inglês para Ciências, Tecnologias, Engenharia, Arte e Matemática) realizado nas redes SESI e SENAI. Ou seja, serão, no mínimo, 11 currículos diferentes, então é um desafio enorme.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Por que o projeto escolheu começar pelo curso técnico de Eletrotécnica?

SÉRGIO GOTTI – Avaliamos, inicialmente, quais são as maiores demandas no mercado. Existe uma demanda forte também por profissionais de TI, de metalmecânica, e temos muitos pedidos de cursos na área de segurança no trabalho. Porém, a Eletrotécnica, além de ser muito demandada no mercado, era um desafio maior para nós porque é um curso que vai exigir muito conhecimento da área de ciências da natureza, laboratórios e pessoal muito bem formado.

É uma grande oportunidade para o SESI e o SENAI testarem um modelo tão exigente com um curso robusto, que tem um leque monstruoso de atuação para nosso aluno. A gente espera que ele vá trabalhar na indústria, mas o curso também abre para ele o horizonte de seguir para uma engenharia ou um curso de educação superior tecnológico. A Eletrotécnica concentra todas as necessidades de inovação nesse projeto.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Como o SESI e o SENAI construíram o projeto ainda sem uma Base Nacional Comum Curricular?

SÉRGIO GOTTI – Construímos o currículo que trabalha por competências e habilidades, não é um currículo conteudista, de uma forma tal que, certamente, quando a Base vier, essas competências e habilidades serão necessárias. O SESI e SENAI foram arrojados na construção desse currículo, mas nós não saímos do zero. Em 2014, implantamos um Currículo Básico Comum, que chamamos de CBC, com foco no mundo do trabalho, em todas as escolas do SESI do Brasil, mais enxuto e por competências e habilidades.

É preciso deixar muito claro que, em momento algum, o Sistema está propondo uma Base, não é isso. É uma contribuição, evidentemente, para o que vai sair de todos os debates com a sociedade e nos órgãos de educação do país. Certamente após a homologação da BNCC do ensino médio pelo Ministério da Educação, faremos as adaptações necessárias nos nossos currículos, como prevê a legislação.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – No 1º ano, os alunos terão orientação sobre carreiras e iniciação profissional. Como será esse módulo em sala de aula?

SÉRGIO GOTTI – No 1º ano, o currículo foi construído prevendo-se uma formação geral para que possa abranger os cinco itinerários previstos na Lei do Ensino Médio, com peso maior nas competências e habilidades de educação básica: são 800 horas destinadas a linguagens, ciências da natureza, matemática e ciências humanas. As demais 200 horas, de forma bem inovativa, foram concebidas com o intuito de preparar o aluno para as escolhas que vêm pela frente, no leque dos cinco itinerários formativos.

É uma construção de um projeto de vida e de carreira, com foco no mundo do trabalho na cidadania, no desenvolvimento humano, na introdução e aprofundamento de ações socioemocionais. Criamos uma série de protótipos que são projetos pré-determinados, que contêm uma série de competências e habilidades específicas a serem trabalhadas, como desenvolver o trabalho em equipe. Vamos levantar questões como: “O que você vai ser quando crescer?” para levar à etapa do autoconhecimento.

A segunda parte é conhecer o mundo do trabalho propriamente dito, o que está acontecendo no mundo, o que o mercado precisa como profissão, inclusive aquelas que ainda não existem, que serão necessárias para a Indústria 4.0. Queremos estimular também a inovação e empreendedorismo. O nosso aluno pode ir para indústria, mas também pode ser empreendedor. Outro tema é raciocínio lógico e lógica de programação. Não adianta você pensar que não gosta de cálculo, de números. A lógica, que vem inclusive da Filosofia, é o definidor de absolutamente tudo o que você faz hoje em dia profissionalmente.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Se o aluno optar pela formação técnica e profissional, ele estará preparado para fazer o ENEM?

SÉRGIO GOTTI – Com certeza estará preparado, até porque o ENEM vai ter de mudar. O ENEM não pode permanecer do jeito que está, pois não existirá um único ensino médio no caminho do aluno. Além disso, estamos saindo de 800 horas para 1.000 horas significativas em cada um dos três anos. Então, independentemente do itinerário que o aluno escolher, ele vai ter muito conhecimento acumulado ao longo de três anos, que certamente vai auxiliá-lo no ENEM de uma forma muito mais rica do que antes, porque ele também vai ter acesso às quatro áreas de conhecimento.

O nosso aluno, quando chegar ao fim do ensino médio, terá também todo o embasamento e auxílio da escola do SESI para que ele não fique, em hipótese alguma, prejudicado no caminho que ele escolher.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Uma questão fundamental para a implantação do novo ensino médio é a capacitação dos professores. Como isso foi feito no projeto do SESI e do SENAI?

SÉRGIO GOTTI – Atualmente são poucas as universidades, como a Faculdade SESI em São Paulo, que já trabalham numa visão de área de conhecimento. Nosso projeto não tem caixa, não tem componente curricular, é totalmente por competências e habilidades, ou seja, é “interárea” mesmo, por assim dizer. Uma nova concepção de trabalho conjunto entre diferentes áreas do conhecimento. O professor não tem formação inicial nesse sentido.

O SESI e o SENAI têm se preocupado demais com isso porque é uma realidade do Brasil. Dificilmente temos hoje em dia um físico que é químico e biólogo para trabalhar ciências da natureza. Por isso, estamos investindo fortemente em formação continuada justamente por área de conhecimento para que os professores de ciências da natureza trabalhem juntos em sala, assim como os docentes das demais áreas do conhecimento: linguagens, ciências humanas e matemática. A formação continuada e o acompanhamento pedagógico para professores, coordenadores pedagógicos e diretores de escolas ocorrem semanalmente e conta com diferentes recursos didáticos.

Esse grupo tem um trabalho semanal de pelo menos quatro horas em que todos precisam sentar juntos e discutir o futuro, como será na semana seguinte, como esse trabalho vai ser desenvolvido em sala. Eles têm de estar muito afinados para chegar em sala de aula e trabalhar como uma orquestra nessa nova visão.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – O SESI e o SENAI também testam diferentes modelos de gestão. Como funcionam?

SÉRGIO GOTTI – Nós somos uma ilha perto do quantitativo de escolas públicas, que tem mais de 53 milhões de alunos, porém, é importante que possamos apoiá-las com inovações e novas metodologias. Então nós precisávamos pensar em modelos de gestão que pudessem atender a realidade do Brasil. Hoje, a maioria das escolas não tem infraestrutura necessária e adequada para oferecer educação profissional e vão precisar de parcerias externas. Estamos vendo o SESI e o SENAI como parceiros muito fortes para a escola pública, principalmente na implantação do itinerário de formação técnica e profissional, mas também na construção do projeto pedagógico integrado.

Já criamos um formato de grade horária semanal, por exemplo, na qual um dia especificamente o aluno poderia se deslocar para se dedicar à formação técnica e profissional em uma unidade SESI-SENAI. O outro modelo é quando temos a integração mesmo, uma unidade única ofertando tanto a educação básica quanto a educação profissional e por fim o modelo de gestão mediado por tecnologia.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – E como funciona o modelo mediado por tecnologia?

SÉRGIO GOTTI – Este modelo está sendo ofertado pelo SESI SENAI da Bahia. Nele, temos um centro de mediação tecnológica que funciona em Salvador e duas turmas de alunos no polo de Feira de Santana. É preciso ficar claro que a educação mediada por tecnologia não é educação a distância. Nela, temos professores em uma ponta, em Salvador, e professores especialistas atuando em Feira de Santana. É enriquecedor para a sala de aula esse trabalho mediado por tecnologia, porque é possível levar aos alunos grandes especialistas e profissionais que estão distantes geograficamente.

Ou seja, a experiência como um todo é um desafio enorme que o SESI e o SENAI estão enfrentando, que tem mobilizado muito a todos das duas instituições, inovador e desafiante. É uma oportunidade muito grande de crescimento para o Sistema Indústria e para educação brasileira, pois certamente temos muito a contribuir, e as perspectivas são as melhores.

Da Agência CNI de Notícias

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