Dois meses após tragédia de Brumadinho, atingidos sofrem de doenças físicas e mentais

Tragédia socioambiental vitimou 212 pessoas e deixou um rastro de destruição nas cidades de Minas Gerais

Por Lu Sudré, para Saúde Popular

Uma região afetada pela falta de abastecimento de água tratada, moradores apresentando adoecimentos físicos e sofrimentos mentais, e um luto que não tem fim. Essa é a situação na qual se encontra a cidade de Brumadinho e comunidades vizinhas, exatamente dois meses após o rompimento da barragem da Vale, no Córrego do Feijão.

De acordo com balanço da Defesa Civil, até sábado (23) a tragédia socioambiental vitimou 212 pessoas. Outras 93 continuam desaparecidas.

Em meio a dor e destruição, uma das principais preocupações dos atingidos é com as consequências que a lama tóxica pode trazer à saúde. Em fevereiro, o governo estadual de Minas Gerais afirmou que quatro bombeiros, que atuavam nas buscas de corpos das vítimas, apresentaram concentração de metais em seus exames de sangue. A notícia agravou o estado de alerta da população.

Córrego do Feijão, onde a barragem da Vale rompeu em 25 de janeiro. | Foto: Douglas Magno/AFP
Christovam Barcellos, coordenador do Observatório de Clima e Saúde, explica que a lama contém resíduos tóxicos como níquel, chumbo, ferro e mercúrio, substâncias que podem trazer consequências sérias para aqueles que entraram em contato com os metais pesados.

Às margens do Rio Paraopeba
Mesmo o contato indireto com os rejeitos também oferece risco à saúde das pessoas, acrescenta o pesquisador da Fiocruz. Isso pode acontecer, por exemplo, por meio do consumo de água atingida pela lama tóxica.

“O sistema de abastecimento de água da região entrou em colapso, foi interrompido o abastecimento. Muita gente está sem água. Existem notícias que muitas pessoas estão abrindo poços na região, e isso é um perigo porque o poço pode trazer água contaminada pelos rejeitos”, afirma Barcellos.

Segundo ele, a compreensão por atingidos pelo crime da Vale deve se estender a todas as pessoas que vivem às margens do Rio Paraopeba, que teve sua morte constatada por estudo da organização SOS Mata Atlântica, no início do mês. “Ali, no entorno do local onde houve o acidente, moram 3 mil pessoas. Todos eles são afetados de uma maneira ou de outra”, argumenta o pesquisador.

Rio Paraopeba contaminado pelos rejeitos da mineração da Vale. | Foto: Lu Sudré
Sentindo na pele
Embora não seja moradora de Brumadinho, a vendedora ambulante Chirlene da Silva Souza, de 34 anos, sente na pele, literalmente, o que acredita ser consequência de água contaminada ingerida há alguns dias.

Horas após beber água da torneira, disponibilizada pela Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), começou a sentir dor no estômago. “Meu braço começou a manchar todo e até hoje estou passando mal. Naquele dia eu bebi quase dois litros de água. Estava com sede, sede mesmo e não tinha outra opção, não tinha outra água. Foi só eu tomar a água que deu isso em mim. Fora o resto que tá acontecendo comigo, minha barriga está inchando, endurecendo”, relata Chirlene.

A moradora do bairro Imperador, em São Joaquim de Bicas – cidade circundada pelo rio Paraopeba – também relata que não é a única a sentir-se mal. “Depois que o povo começou a beber essa água tem um monte de gente passando mal, vomitando, tendo diarreia. Minha mãe está com umas manchas feias no corpo. Minha sobrinha, que mora pra baixo e está bebendo a água [da Copasa], diz que está dando dor de barriga na família toda”.

Chirlene procurou a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da cidade e foi encaminhada para realizar exames de sangue e urina com a finalidade de investigar a possibilidade de intoxicação.

“No braço que está manchado, parece que a carne está morta. Do jeito que o povo fala, tenho medo. Falam que se a gente beber pode dar muitos danos. Falam que prejudica a saúde depois de anos e a minha já tá prejudicando”, conta preocupada.

José Geraldo Martins, farmacêutico e integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), confirma a situação relatada por moradores.

“Temos casos esparsos de problema de pele, em sua maior parte manchas, feridas, algumas coceiras, em crianças, jovens. Isso está sendo observado de uma maneira qualitativa, não temos um levantamento quantitativo disso, mas, qualitativamente, nós que estamos no território temos observado isso”.

Geraldo diz que em municípios como Mário Campos e Betim, cresce também a morte de animais. “Animais de grande porte como bovinos, equinos, cães e gatos que morrem do nada, porque certamente foram lá, na beira do rio, beberam da água e acabam morrendo”, conta.

Segundo o militante, que atua no setor de saúde do MAB, a água potável não está sendo oferecida a toda a população.

“Uma boa parte das pessoas, que moram rio abaixo, utilizam cisternas e poços que, de certa forma, se alimentam da água do Paraopeba. Há surtos de diarreia, vômitos, dores abdominais. É um quadro sugestivo de gastroenterite causada, provavelmente, pela má qualidade da água, porque está visivelmente turva, muito mais turva do que os padrões aceitáveis para o consumo humano”.

Procuradas, a Copasa e a Secretaria de Saúde de Minas Gerais não responderam às perguntas da reportagem sobre ações de prevenção, tratamento e o número de pessoas intoxicadas, até o fechamento desta matéria.

Sofrimento mental
Apesar dos sintomas físicos, Zé Geraldo avalia que o grande dano do crime socioambiental da Vale se dá em nível psicológico.

“Há um sofrimento mental decorrente da morte de amigos, familiares próximos; muitos corpos não foram resgatados ou identificados. As famílias não puderam nem dar um enterro digno aos seus entes queridos, e houve perda do modo de vida, de projetos de renda. Os agricultores, os pescadores, pessoas que viviam de alguma forma ligadas à exploração do rio.”

De acordo com o representante do MAB, a incerteza no futuro é outro sentimento que atormenta os atingidos de Brumadinho, já que as soluções oferecidas pela Vale são temporárias, como a garantia de caminhões-pipa para os agricultores irrigarem suas hortas.

Destruição ambiental
A confirmação da inexistência de vida no Paraopeba é outro elemento preocupante, na opinião de Christovam Barcellos, do Observatório de Clima e Saúde. Com a lama tóxica, o ecossistema do rio foi destruído, gerando desequilíbrio ao meio ambiente e proliferação de outras doenças.

“Os peixes são predadores de diversos tipos de animais, inclusive larvas de mosquito. Pode ser que o rio Paraopeba comece a ter transformações ecológicas e surjam novas espécies, porque está faltando peixes, répteis, sapos, lagartos, cobras. Todos esses são predadores de algumas espécies. Isso pode criar um ambiente favorável para a transmissão, por exemplo, da febre amarela e da esquistossomose”, aponta Barcellos.

O especialista acrescenta que aqueles que entram em contato com a lama tóxica podem contrair leptospirose. “Todas essas doenças podem ser consequências indiretas do desastre. Precisamos olhar além da lama de rejeito e do Córrego do Feijão, e sim toda a bacia do rio Paraopeba. Uma perturbação ecológica dessa magnitude, desse tamanho, alcançando vários ciclos naturais, animais e minerais, pode perturbar tanto o ambiente que acabam surgindo doenças novas e aparecendo mosquitos em áreas que não tinham mosquito”, enfatiza.

Estudo por 20 anos
Em resposta à demanda da reportagem, o Ministério da Saúde disse, em nota, que está desenvolvendo um “estudo de coorte [conjunto de pessoas que têm em comum um evento ocorrido no mesmo período] que vai avaliar doenças que estejam relacionadas diretamente ao desastre, como a contaminação por metais pesados e leptospirose”. O estudo deve acompanhar, segundo o ministério, cerca de mil profissionais envolvidos no resgate de vítimas do rompimento da barragem em Brumadinho pelos próximos 20 anos.

Ainda de acordo com a pasta, “o primeiro passo do monitoramento será a coleta de amostras de sangue e urina, que seguirão para análise no Instituto Evandro Chagas (IEC), primeiro laboratório de referência para essa ação”. Caso seja necessário, completa a nota, “outras instituições referenciadas também poderão ser envolvidas”.

De acordo com o ministério, a ação terá a colaboração de pesquisadores de instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), as universidades federais de Minas Gerais (UFMG) e do Rio de Janeiro (UFRJ) e a organização Médicos Sem Fronteiras.

Edição: Cecília Figueiredo

Saúde Popular

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