Folclore assustador: livro propõe uma história de horror bem brasileira

Situado no interior de SP e povoado por mitos do nosso imaginário, romance de estreia de Filipe de Campos Ribeiro prova que o Brasil é terra fértil também para histórias sombrias

As prateleiras de horror/terror das livrarias acabaram de ganhar um “hóspede” inusitado: Terra de Sonhos e Acaso, de Filipe de Campos Ribeiro, publicado pela editora Martin Claret e cujo lançamento acontece no próximo sábado (13 de abril), no Sebo Clepsidra, em São Paulo. É verdade que a discreta capa, à primeira vista, não causa estranhamento algum. Mas basta ler algumas páginas para percebermos que há algo de diferente na história.

Há um aroma distinto do que costumamos encontrar nas publicações dessas prateleiras — e que não é o da celulose, que tanto apreciamos. Há, em todo o livro, um perfume curiosamente brasileiro. Ou melhor, essencialmente paulista. Mais ainda: especialmente do interior de São Paulo.

A própria circunstância em que se deu a publicação já merece destaque. Pois se trata do romance de estreia de Filipe, que nasceu em São Paulo e, além de escritor, é professor de inglês. Não são muitos os autores que emplacam, logo de cara, um volumoso tomo de 300 páginas. “Mandei o original para todas as editoras que publicam horror nacional, mas nenhuma me respondeu”, conta ele. “Até que o livro acabou chegando à Martin Claret, que decidiu apostar. Tive muita sorte”.

Além disso, também são poucos os autores que ambientam suas histórias de horror em lugares como Rio das Almas — a “terra de sonhos e acaso” do título, cidade fictícia que abriga a trama e que também descobrimos ser o típico município do interior paulista. A inspiração foi Taubaté, onde Filipe cursou o Ensino Médio. “É lá que eu penso quando penso no interior de São Paulo”, afirma ele.

Terra primitiva
E é para Rio das Almas que vai Ismael, o protagonista do livro, depois de enterrar o pai, morto pela aids (a mãe falecera anos antes, após contrair o vírus do marido). O intuito do rapaz é vender uma casa onde passou parte da infância e reencontrar Henrique, o melhor amigo que se mudara para a cidade.

Ao chegar, Ismael constata que algumas ocorrências apartaram Rio das Almas do restante do mundo. A cidade foi devastada por tempestades, encontra-se sob intervenção militar e seus habitantes estão acuados por crimes tão estranhos quanto violentos. O lugar está irreconhecível. As afetuosas memórias da infância de Ismael dão lugar a uma atmosfera de hostilidade e tensão.

No entanto, conforme a trama se desenvolve — com o protagonista procurando pelo amigo Henrique, que está desaparecido, e às voltas com descobertas assustadoras sobre o seu passado e o de sua família –, as coisas vão entrando sutilmente em seus devidos lugares.

Aos poucos, Ismael percebe que está profundamente ligado àquela terra insólita. E é neste processo revelatório que reside a principal força da história de Filipe: a investigação do imaginário paulista e, em menor grau, brasileiro; a busca por particularidades que o definam.

A revelação pela pornochanchada
“O título Terra de Sonhos e Acaso veio antes do livro”, conta o autor. “Surgiu quando eu morava no Rio de Janeiro e vi que a Folha de S.Paulo estava vendendo pôsters com as primeiras páginas do jornal. E que os três mais vendidos eram o impeachment do Collor, a morte do Ayrton Senna e, disparado, o incêndio no edifício Joelma. Fiquei louco com aquilo! Eram pistas muito contundentes dos fragmentos que construíram nosso imaginário”.

De acordo com Filipe, o livro nasceu dessa inquietação. “Sempre tivemos um problema de identidade. Lembro da primeira vez em que assisti a um filme da pornochanchada. Aquelas pessoas falavam, agiam e se relacionavam como as pessoas que eu conhecia. Nada parecido com os filmes americanos. Então, senti essa urgência de dar uma contribuição, que se renova a cada geração, para tentar desvendar quem somos. O livro é a minha resposta”.

Uma teoria sobre o horror
É verdade que incontáveis escritores, músicos e artistas brasileiros em geral padeceram — e padecem — desta crise de identidade. Mas são raros aqueles que escolhem as ficção de horror para enfrentá-la. É exatamente o que Filipe faz, povoando sua história com fantasmas, figuras folclóricas e estratégias dessa vertente literária.

“O horror nos permite tocar em temas que normalmente não seriam abordados — alguns, nem sussurrados”, reflete o autor. “É o caminho do medo, das paixões primitivas. E que, de tempos em tempos, volta com força. É o que está acontecendo agora e tenho uma teoria sobre isso”.

Filipe detalha seu pensamento: “certa vez, o (escritor) J. G. Ballard afirmou que a morte do presidente (norte-americano) Kennedy causou uma ruptura na ordem de tudo. Ele disse que foi como o sacrifício de um rei mítico, que mudou completamente o mundo como o conhecíamos. Acredito que a morte de David Bowie tenha causado algo parecido. Não estou comparando um presidente a um músico, mas a tudo o que a morte de Bowie simbolizou. Acredito que algo se quebrou ali. Desde então, tivemos uma sucessão de tragédias geopolíticas, o ‘fim da música’, uma repulsa ao sexo, a prevalência dos algoritmos nas redes sociais e o achatamento das experiências intelectuais pela repetição que eles impõem. Nesse cenário de chacina, não é de se admirar que o gênero que mais cresceu tenha sido o horror”.

Para o autor de Terra de Sonhos e Acaso, o triunfo do horror não é espelhar a realidade, “mas propiciar algo novo, algo pulsante, que, no nosso mundo ensimesmado, não esperávamos mais encontrar”. Por isso, Filipe acredita que o gênero passe por sua época de ouro — a qual o Brasil comparece com uma produção cada vez mais variada — e perfumada, claro.

Galileu

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