Amazônia

Poluição por fumaça em comunidades Kayapó supera limite recomendado pela OMS em 800% no auge da temporada de queimadas na Amazônia 

Em setembro de 2024, em comunidades nas Terras Indígenas Menkragnot e Baú, no Pará, a concentração de ar poluído por fumaça atingiu a média de 134 µg/m³, quando limite estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é de 15 µg/m³. Lideranças relatam dificuldades para respirar e plantações são destruídas pelo fogo. 
 

Por Cecília Amorim | Carta Amazônia

Em setembro de 2024, o dia virou noite nas comunidades Mopkrore e a Pikato, na Terra Indígena (TI) Menkragnoti, do povo Kayapó, interior do Pará. A mudança foi causada pela fumaça que vinha do fogo e se alastrava na floresta. As duas comunidades indígenas foram as mais impactadas pela fumaça no ano passado na Amazônia, registrando, naquele mês, a pior média de poluição: 135 microgramas por metro cúbico (µg/m³) de material particulado fino (PM2.5), as partículas tóxicas presentes na fumaça, segundo análise da InfoAmazonia. Esse valor registrado foi 800% superior ao que é considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde (15 µg/m³).

“Muitas crianças tiveram febre e tosse. Os idosos também sofreram com falta de ar. A fumaça era tão densa que, durante o dia, parecia noite”, conta o cacique geral Patkore Mekragnotire, que atua nas TIs Mekragnoti e Báu, ambas Kayapó.

Vizinha a Mekragnoti, na TI Baú, em setembro, a concentração de fumaça também foi superior ao limite estabelecido pela OMS: foi registrado 40.9 µg/m³, 172% acima.

Além do mês de setembro, em toda a temporada da fumaça na Amazônia no passado, a concentração média do material particulado nas comunidades indígenas Mopkrore e a Pikato também foi acima da média, com índice de 41.3 µg/m³. À época, o fogo causador da densa fumaça também destruiu roçados e deixou crianças sem aulas. Em 2025, o povo Kayapó espera um cenário diferente e reforça a necessidade de proteção ambiental.

“O rio é como o sangue, a terra é como a carne, e a floresta é como os ossos. Se destruirmos isso, é como matar uma pessoa. Estamos segurando o céu. Se a floresta cair, todos caem junto”, afirma o líder indígena Dotor Takak Ire, presidente do Instituto Kabu, organização que atua no monitoramento e gestão territorial das TIs Mekragnoti e Báu.

O território dos Kayapó abrange cinco TIs, onde vivem pouco mais de 10 mil indígenas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quatro dessas TIs estão localizadas no sudeste do Pará, incluindo as terras Mekragnoti e Báu, enquanto a outra fica no estado do Mato Grosso.
 

Para entender o impacto da poluição por fumaça nas terras indígenas na Amazônia e identificar as comunidades mais impactadas, a InfoAmazonia  coletou registros do serviço de monitoramento da atmosfera Copernicus (CAMS), do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas (ECMWF). Depois, cruzou os níveis de PM2.5 com as localidades indígenas do IBGE.
 

Esta é a quarta reportagem da série “Invisíveis da fumaça“, uma parceria entre a InfoAmazonia e a Carta AmazôniaA produção exclusiva investigou a poluição do ar atribuível às queimadas históricas que ocorreram entre julho e dezembro de 2024, em pequenos povoados e comunidades da Amazônia.  

Para ir além desses altos números de poluição registrados nas comunidades do povo Kayapó e encontrar as histórias das pessoas que viram suas vidas serem transformadas pela fumaça, a Carta Amazônia conversou com lideranças Kayapó. Os relatos mostram como os povos indígenas das comunidades Mopkrore e a Pikato enfrentaram os incêndios, quais foram os impactos na saúde e a como eles têm reconstruído o que foi perdido.

MAPA: 

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A propagação do fogo

As TIs Baú e Menkragnoti são ameaçadas pela presença constante de garimpeiros e madeireiros. Lideranças indígenas ouvidas pela reportagem afirmam que, em anos anteriores a 2024, as regiões já tinham problemas com o excesso de fogo. No entanto, na avaliação deles, o que aconteceu no último semestre do ano passado foi diferente: a intensidade das queimadas estava ainda maior.

Entre junho e setembro de 2014, os territórios indígenas da Amazônia registraram o maior número de focos de calor para o período desde 2003. Entre elas, a TI Kayapó foi a que mais queimou — sozinha, ela acumula 27,1% (2.213) no período.

Na temporada de fogo do ano passado, os indígenas mais velhos do povo Kayapó foram os primeiros a notar algo incomum. Com base em seus conhecimentos ancestrais sobre o comportamento do fogo e as condições climáticas, alertaram as lideranças sobre mudanças nos padrões das queimadas na região.
 

“Nossos anciões das aldeias ficaram assustados com tanta fumaça e não sabiam de onde estava vindo. Eles falavam para nós: ‘Quando a gente toca fogo aqui nas nossas roças, a fumaça é pouca, mas essa fumaça está totalmente diferente’. Foi aí que a gente percebeu que não só na nossa terra que estava pegando fogo, mas em geral. Os nossos anciãos ficaram com medo, porque nunca tinham visto uma fumaça tão grande”, conta o indígena Mydjere Kayapo Mekragnotire, morador da TI Baú. Ele trabalha com relações públicas do Instituto Kabu.

Em setembro de 2024, a situação se agravou e os incêndios aumentaram. Apenas nos dois primeiros dias do mês, o Pará registrou 2.800 focos de calor, conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Desses, 1.754 (63%) focos foram nos municípios de São Félix do Xingu, Altamira e Novo Progresso, os municípios que circundam as TIs Kayapó. Isso fez com que as aldeias ficassem dentro de um círculo de fogo. 

‘Fumaça ardia nos olhos’

Indígena da TI Menkragnoti, Po Yre Mekrãgnotire, de 28 anos, atua no Instituto Kabu. Ele trabalhou mapeando os focos de incêndio no território Kayapó.

“Tivemos que descer o rio. A fumaça ardia os olhos. Levamos três horas e meia para chegar a um ponto onde o fogo estava mais intenso [durante o monitoramento]. O vento ajudou a espalhar as chamas”, relata.

Os incêndios tinham múltiplas origens, incluindo queimadas em fazendas na região, relembra Mydjere Mekragnotire. Essas propriedades no município produzem, principalmente, soja, milho e arroz — em geral, a queima da vegetação no segundo semestre é feita para a preparação do solo para a agricultura.

“Parte do fogo que pegou nossas terras foi por queima de roça. Mas também havia incêndios criminosos. Fazendeiros tocaram fogo em suas propriedades, e as chamas entraram na nossa terra”, afirmou.

Doto Takak Ire, que além de presidente do Instituto Kabu, mora na TI Mekragnotire, reforça que o desmatamento ao redor das TIs foi um fator crucial para o registro de queimadas e o consequente índice de concentração de fumaça poluída.

“As terras indígenas estão no centro de áreas devastadas. A fumaça se concentrou aqui porque o fogo veio de todos os lados.”

A rapidez com que o fogo se alastra e o aumento das queimadas na Amazônia estão diretamente relacionados com as mudanças climáticas, explica Denis Conrado, engenheiro florestal e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Ele destaca que o aumento da temperatura da Terra e o clima seco contribuem com esse resultado.

“As secas severas na Amazônia e os aumento dos incêndios florestais são algumas das consequências [das mudanças no clima]. Isso é devastador para a biodiversidade e comunidades da região”, destaca Conrado.

‘Parecia noite’

Cacique geral das TIs Baús e Mekragnoti, Patkore Mekragnotire conta que, em 2024, havia apenas cerca de 15 brigadistas para atuar no combate ao fogo em toda extensão da TI Menkragnoti. Eles eram os do Prevfogo, programa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) responsável pela prevenção, controle e combate a incêndios florestais no Brasil.
 

“Até as folhas debaixo das árvores não tinham umidade. Por isso, o fogo foi tão grande. Não tivemos controle, nem de fora nem de dentro da aldeia. Pedimos mais funcionários, mas não conseguimos apoio suficiente”, conta Mekragnotire .

Para os moradores das aldeias dos Kayapó, a fumaça não foi apenas um incômodo, mas também uma ameaça à vida. O cacique descreveu que a fumaça formava uma grossa camada cinza, o que impossibilitava a visão a menos de um metro de distância. Além disso, causava desconforto e coceira nos olhos e nariz. Respirar era um desafio.

Roças queimadas e aulas suspensas 

A destruição das plantações pelo fogo foi um dos golpes mais duros para as comunidades Kayapó. Roças inteiras foram consumidas pelas chamas. Os indígenas tiveram de deixar de fazer atividades do cotidiano, como cuidar das lavouras e ir às escolas.

“As terras indígenas [Mekragnoti e Báu] estão no centro de áreas devastadas. A fumaça se concentrou porque o fogo veio de todos os lados. As aulas foram suspensas por três meses e só voltaram com as primeiras chuvas, que diminuíram as queimadas. As atividades rotineiras se tornaram inviáveis e tudo ficou paralizado”, afirmou Dotor Takak Ire. O Instituto Kabu estima que ao menos 210 alunos ficaram sem aulas.

A fumaça e a falta de alimentos afetou as escolas, que dependiam do plantio da comunidade para fazer a merenda servida às crianças. Com as plantações queimadas, as aldeias mais afetadas ficaram em situação de insegurança alimentar.

“Nossas roças do ano passado foram todas queimadas: plantação de mandioca, batata, banana, abóbora e outras plantas. Perdemos tudo. Passamos por uma dificuldade tão grande. Agora, nós plantamos de novo, mas vai demorar para a gente poder ter as nossas coisas no tempo normal. Vai demorar muito”, conta Mydjere, da TI Baú.

As lideranças relataram que não receberam ajuda externa para suprir a falta de alimentos. O cacique da aldeia Bepdjo Kayapó, da TI Baú, afirma que nenhuma organização ou órgão de Estado, incluindo o governo federal, prestou apoio ou suporte aos indígenas impactados pelo fogo e fumaça do ano passado.

“Sempre lutamos por conta das madeiras e dos garimpeiros. Mesmo assim, a gente plantava. Desta vez, estávamos lutando com o fogo e a fumaça que não deixava plantar nada. Mas estamos melhorando agora”, afirma o cacique.

As chuvas do inverno amazônico, que se iniciaram em dezembro, foram as grandes responsáveis por diminuir os focos de queimadas e, consequentemente, a fumaça. O cenário também trouxe a possibilidade de novas plantações, renovando a esperança e a disposição de luta dos Kayapó.

“O rio é como o sangue, a terra é como a carne, e a floresta é como os ossos. Se destruirmos isso, é como matar uma pessoa. Estamos segurando o céu. Se a floresta cair, todos caem junto”, conclui Dotor.

Foto de capa: Po Yre Mekragnotire

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Esta reportagem é uma parceria com a Carta Amazônia e faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia. Foi produzida na Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com apoio do Instituto Serrapilheira. 
 

Ilustração da reportagem: Utópika Estúdio .

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