Muito cedo, muito tarde
Esta história tem oito capítulos. Primeiro – Quando criancinha, quiseram lhe ensinar a rezar, mas alguém objetou que era muito cedo para pensar em Deus. Não ia entender nada. Segundo – Quando se tornou menino, acharam bom mandá-lo para o catecismo, mas logo disseram que ainda era muito pequeno para pensar em Deus. Melhor deixá-lo brincar. Terceiro – Quando era jovem, chegou um convite para participar de um grupo da Igreja, mas ele estava ocupado com a namorada e os colegas responderam, por ele, que estava muito apaixonado para pensar em Deus. Quarto – Quando homem feito e já casado, a esposa o convidava para ir à Missa, mas ele respondia que estava muito ocupado para pensar em Deus. Quinto – Num final de semana, teve um encontro de casais em sua paróquia, mas ele mandou dizer aos amigos que não iria participar porque estava muito cansado para pensar em Deus. Sexto – Entretido nos negócios, não adiantou convidá-lo para um retiro espiritual. Pela secretária mandou avisar que, naqueles dias, estava muito preocupado para pensar em Deus. Sétimo – Já era bem idoso quando quiseram levar um padre na sua casa para uma visita, mas os netos responderam que estava muito cansado para pensar em Deus. Oitavo – Quando morreu e o levaram para o cemitério, todos comentaram que agora era muito tarde para pensar em Deus. Também… Não adiantava mais.
Com certeza estou repetindo algo conhecido; não tenho a pretensão de dizer sempre coisas novas. No entanto aquela vida resumida em oito capítulos, pode nos ajudar a começar bem os quarenta dias da Quaresma. Pode ser um tempo bom, bem utilizado – quem sabe, para pensar em Deus – ou, mais uma vez, passará como tudo passa. Rapidamente.
Na vivência da nossa fé, nós todos experimentamos muitas tentações. A primeira é aquela de adiar as coisas de Deus. Nem sempre é culpa nossa. Pode ser que não as conhecemos ou as conhecemos mal. Para muitos, Deus é ainda um quebra-galho ao qual recorrer nas horas mais difíceis da vida. Para o resto dos dias, melhor ficar longe. Deus não é nem amigo, nem inimigo. Simplesmente, não interessa. Não é um assunto envolvente. Para outros, tudo se resolve com algumas práticas religiosas; quase um mínimo indispensável para não desagradá-lo demais. Pode ser que, de repente, Ele resolva nos ajudar ou nos castigar; afinal, eles pensam, nunca conhecemos a sua vontade. Quase o mesmo acontece com a Comunidade chamada Igreja. Se não precisamos dela, por que frequentá-la? Talvez um dia…Assim, os anos passam. Nem quentes e nem frios, mornos (cf. Ap 3,16).
A outra tentação é aquela de dizer a nós mesmo e aos outros que sim, gostaríamos participar, mas não temos tempo. Nesse caso, serve o “vale-tudo” das desculpas. Mais uma vez, é como se a fé em Deus atrapalhasse a nossa vida e não nos permitisse realizar livremente nossos sonhos, prazeres e opções. São muitos os que pensam que ser cristão seja mais um peso que uma alegria, mais uma corrente que aprisiona que uma libertação.
O tempo de Quaresma, com a sua proposta de escuta da Palavra, oração e solidariedade com os sofredores, pode ser uma boa oportunidade para nos questionarmos não somente sobre o que pensamos do próprio Deus, mas também sobre como buscamos nos relacionar com Ele. O que nos parece liberdade, às vezes, amarra-nos em laços e grilhões que nos prendem e escravizam. Os prazeres que desejamos, podem ser comodismo ou alienação, afastando-nos das responsabilidades familiares e sociais. A recusa de parar para refletir, em busca de decisões mais certas, pode ser também o resultado do vazio do nosso coração, onde confundimos as paixões com o amor verdadeiro, a vantagem imediata com os valores que dão sentido à nossa vida. Não é Deus que nos tenta. Nós somos a nossa própria fraqueza; Ele pede para ser a nossa força, antes que seja tarde demais.