Estreia – História real que inspirou "Moby Dick" ganha contornos épicos na aventura "No Coração do Mar"
SÃO PAULO (Reuters) – “Chamai-me Thomas” não é, mas caberia muito bem como a primeira fala em “No Coração do Mar” (2015), novo filme de Ron Howard que leva às telas do cinema o caso real que inspirou as páginas escritas por Herman Melville em sua obra-prima “Moby Dick” (1851).
O fato de grande parte da produção seguir o ponto de vista de Thomas Nickerson, um dos sobreviventes do naufrágio do baleeiro Essex em 1820, seria a razão mais lógica para citar a frase inicial tida como a mais famosa da literatura, segundo alguns especialistas.
Contudo, tal qual o escritor apresentou categoricamente seu narrador como Ismael, envolto em referências bíblicas ao filho ilegítimo de Abraão para compor a simbologia de um homem selvagem e rejeitado, que acompanha a vida em uma Arca de Noé da Humanidade, o cineasta usa a figura do órfão, cujo nome tem origem no apóstolo incrédulo do Evangelho, como interlocutor de uma história que beira a fantasia para alcançar o âmago de questões humanas sempre urgentes.
Charles Leavitt, roteirista de “Diamante de Sangue” (2006), adapta o premiado livro homônimo de Nathaniel Philbrick, publicado em 2000, que detalha os acontecimentos vividos pela tripulação do Essex.
Seu roteiro, porém, cria um fictício – ao que tudo indica – encontro de Melville (Ben Whishaw, o Q dos últimos “007”) e Nickerson (interpretado nesta parte por Brendan Gleeson, e nas recordações por Tom Holland) para introduzir claramente a ligação entre o naufrágio real e o ficcional.
Na realidade, o autor utilizara os relatos de outro sobrevivente retratado no longa como uma das fontes de inspiração para a sua obra, entre elas sua própria experiência em um baleeiro.
Mas se engana quem espera ver a mesma obsessão do capitão Ahab comandando as ações da embarcação, como lida no clássico ou vista no longa de John Huston de 1956; pelo menos a princípio. Howard volta a trabalhar com a rivalidade entre dois homens, que lhe foi cara em “Rush – No Limite da Emoção” (2013), contrapondo a diferença social, de personalidade e pensamentos, mas que ganha um viés ainda mais trágico aqui com a ambição de ambos.
Mais conhecido como intérprete do heroi Thor, Chris Hemsworth aqui atua como o imediato Owen Chase, filho de um pária que espera dar uma vida melhor a sua mulher (Charlotte Riley) e o futuro bebê a nascer, tornando-se capitão.
No entanto, a nomeação de George Pollard (Benjamin Walker, de “Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros”), membro de uma poderosa família de Nantucket, ilha do Massachusetts que se especializou na caça e comércio de óleo de baleia, atrapalha seu sonho de estar à frente da próxima expedição.
A péssima impressão inicial que um tem do outro mina a relação dos dois dentro do Essex e expõe a tripulação aos riscos do alto mar, especialmente quando a vontade de se verem livres de seu respectivo desafeto os leva a encontrar a grande cachalote que aterroriza o centro do Pacífico.
A partir daí, só basta alertar que, diferente do que a imagem divulgada nos últimos dias faz pensar, Hemsworth aparece muito magro em pouquíssimas cenas. A questão do canibalismo é pouco desenvolvida pelo roteiro e direção com o Thomas jovem, cabendo à sua versão mais velha carregar a maior parte do dilema moral.
Cineasta versátil em gêneros e temáticas, Howard, que levou o Oscar por “Uma Mente Brilhante” (2001), tem a oportunidade de mostrar todo o seu apuro técnico nesta aventura marítima dramática, além de sua verve sentimental, embora tenha mais controle neste quesito com este trabalho.
Todavia, pode causar alguma estranheza o visual mais fantástico criado em CG para as tempestades e encontros com a baleia, quando confrontado com o realismo nas cenas de navegação e calmaria no mar, observados na fotografia de Anthony Dod Mantle, também ganhador do prêmio da academia por “Quem Quer Ser Um Milionário?” (2008).
Talvez essa diferença estética seja até valorizada, em 3D e/ou IMAX, formatos que estarão disponíveis nas versões brasileiras, mas outros aspectos dão a unidade necessária, a exemplo do competente elenco, a tensão conferida na montagem de seus antigos parceiros Daniel P. Hanley e Mike Hill e a grandiloquência da trilha sonora do espanhol Roque Baños.
Melville abre seu livro com várias citações da Bíblia, da literatura e da cultura popular às baleias e ao Leviatã, monstro marinho mítico, muitas vezes associado ao animal e a forças diabólicas.
O teólogo São Tomás de Aquino chegou a afirmar que ele era o demônio da inveja, entretanto, seu quase xará que relata o drama no navio aponta que a monstruosa baleia, enquanto objeto de desejo da cobiça humana, provoca o pecado dos homens, mas não é o mal em si.
Ron não alcança as várias interpretações suscitadas em “Moby Dick”, contudo, entrega a dose certa de entretenimento e mais reflexão do que o público espera em uma superprodução como esta.
Representações de um julgamento final, entre outras referências religiosas, continuam, enquanto o olhar mais atento de reconhecimento ao desconhecido e temido nutre questões sociais e filosóficas.
Porém, especialmente neste momento em que é realizada a Conferência do Clima em Paris, a discussão ambiental, que abarca também o âmbito econômico e político, é a que ganha mais destaque no embate do desmedido desejo humano com a força da natureza.
(Por Nayara Reynaud, do Cineweb)
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