Cem anos do rádio no Brasil: a cultura das radionovelas

O vaqueiro Soropita ama Doralda. Ama de um jeito que é capaz de montar a cavalo, sair de uma comunidade chamada Ão, em um grotão mineiro em que vive, para ouvir capítulos de radionovela no distrito de Andrequicé, na cidade de Três Marias (MG), onde conseguia captar a transmissão. Ão é uma comunidade fictícia criada pela genialidade de João Guimarães Rosa, no conto Dão-lalalão, do livro Noites do Sertão, publicado pela primeira vez no ano de 1956.

Aquela década de 1950, aliás, fazia parte da Era de Ouro do Rádio. Na história, o vaqueiro descobre-se, também, encantado por radionovelas. Ao recordar os capítulos para a amada e para a comunidade ansiosa por ouvi-lo, pensa na própria vida.

O pesquisador José Osvaldo dos Santos, de 70 anos, que criou um Ponto de Memória na cidade de Cordisburgo (MG), cidade natal de Rosa, entende que a história revela a importância que as radionovelas exerceram naquele período também para o interior brasileiro.

“O conto termina com todas as pessoas do lugarejo indo ouvir os capítulos da novela e ansiosos para que Soropita voltasse no outro dia para contar mais. As novelas no rádio nos deixaram muitas saudades. Era uma hora solene onde todas as pessoas adultas se reuniam na casa para se deliciarem com os acontecimentos do cotidiano do mundo”, afirma o pesquisador, cujo Ponto de Memória tem o nome de Aqui já é Sertão.

Ele recorda radionovelas como “Jerônimo, o Herói do Sertão”, “O Direito de Nascer”, “Marcelino Pão e Vinho”. “Além de muitas outras que nos maravilhavam. O rádio até hoje é de uma importância grandiosa”.

O próprio pesquisador é um confesso apaixonado pelos aparelhos de rádio e pelos sons que saem daquelas caixas mágicas. Na casa em que guarda relíquias, muitas para lembrar de Guimarães Rosa, ele expõe mais de 100 aparelhos antigos de rádio, que ele comprou ou recebeu como doação. “Muitos ainda funcionam”.

O primeiro capítulo
Na ficção e na vida real, aparelhos fizeram e fazem as pessoas sonharem. Foi assim desde o começo, conforme explica a professora de comunicação Rose Esquenazi, especialista em história do rádio. A primeira radionovela foi na Rádio Nacional, Em Busca da Felicidade, que era patrocinada por uma marca de creme dental.

“Antes de estrear, as pessoas que mandassem para a Rádio Nacional uma embalagem dessa pasta de dente ganhava um livrinho simples com os radioatores e a trama da história. Ninguém esperava que 48 mil cartas chegassem à emissora”, lembra Rose Esquenazi.

Para o pesquisador Thiago Guimarães, do acervo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a Era de Ouro do Rádio coincide com o momento áureo das radionovelas. “Elas alcançaram o status de principal produto produzido pelas emissoras na época”, afirma.

A radionovelas eram inicialmente transmitidas à tarde e deixavam as ouvintes emocionadas. O sucesso era tanto que a história passou a ser transmitida três vezes por semana. “A chegada desse formato fez tanto sucesso que logo a Rádio Nacional abriu diferentes horários. Então, a programação da Rádio Nacional chegou a ter 16 novelas no ar”, diz a professora Rose Esquinazi. Com personagens fixos, como o vilão, o traidor e a heroína.

“A Rádio Nacional, então, separou um andar inteiro do prédio do jornal A Noite, na Praça Mauá, exclusivamente para as radionovelas. A emissora formou uma equipe de radioatores, diretores, autores, maestro e músicos. A Rádio Nacional transmitia ao vivo essas novelas”, diz a pesquisadora.

A professora explica que, em meados dos anos 1950, auge da Rádio Nacional, tinham contrato 670 funcionários, sendo 10 maestros e arranjadores, 124 músicos, 96 cantores e cantoras, No palco oval, ficava a orquestra. O diretor, no centro. Os atores permaneciam sentados e iam pro microfone conforme os papéis deles começavam a aparecer. Atrás, uma instalação era reservada para quem fazia a sonoplastia. “Como não tinha computador, todos os efeitos especiais eram feitos com pequenos aparelhos. A campainha, o chão de assoalho, a areia, o trovão…tudo era feito com pequenos aparelhos”.

As novelas eram melodramas que depois foram até adaptadas para a TV, como ocorreu com O Direito de Nascer, sucesso em 1951 na rádio. “A Rádio Nacional tornou-se a principal emissora do Brasil. Outra emissora que passou a ganhar destaque com o gênero foi a Rádio São Paulo”. A professora aponta que a Rádio Nacional chegava longe por causa da capacidade das suas antenas.

Segundo o pesquisador Thiago Guimarães, as radionovelas cubanas eram referência na América Latina e elas já eram uma adaptação do modelo norte-americano, conhecido como soap opera. “A primeira radionovela transmitida no Brasil, Em busca da Felicidade, foi adaptada de um original cubano. O Amaral Gurgel, que chegou a atuar na novela, ressaltou que a adaptação que Gilberto Martins fez do texto original de Leandro Blanco foi importante para o sucesso da novela”.

Ele explica que as produções em São Paulo e no Rio de Janeiro geraram uma sensação de pertencimento de um Brasil moderno da metade do século 20. “A radionovela passa a perder força quando a televisão se consolida no Brasil, provocando o deslocamento dos anunciantes do rádio para a TV. Com isso, os profissionais – atores, diretores, escritores, técnicos – acabam sendo atraídos para a televisão, fazendo com que a produção de radionovelas declinasse (muito embora não tenha desaparecido completamente)”.

Na Amazônia
Para o pesquisador Claudio Paixão, que estudou as influências das radionovelas a partir das produções da Rádio Nacional da Amazônia (confira aqui a pesquisa), implantada em 1977, as produções na região Norte tiveram outros momentos de auge. Havia um repertório especial e apelo: novelas com um colorido regional e com comprometimento socioambiental. Mesmo que fossem gravadas a partir do Rio de Janeiro. Antes das novelas, esquetes de radioteatro eram encenadas com o foco na saúde. “Na década de 1970, rádio ainda era novidade para o interior da Amazônia. As primeiras produções na rádio foram Poronga, Terçado e Coragem e Heróis Anônimos.

Claudio Paixão contextualiza que contar histórias brasileiras também significou uma ação estratégica para a região, uma vez que emissoras estrangeiras faziam o papel de comunicação no interior. A primeira radionovela produzida especificamente pelos profissionais da Rádio Nacional da Amazônia foi A História do Dito Gaioleiro (escrita em 1979 e levada ao ar em 1980). “Embora seja uma produção infantil, o que a gente percebe nessa radionovela é o interesse dela em passar lições sobre o cuidado com o meio ambiente e de não deixar os pássaros presos em gaiolas, com discussões sobre ética e cidadania”.

Depois vieram as radionovelas para adultos, como Dois Corações, que foi produzida a partir da sugestão de um ouvinte. O pesquisador cita que tiveram ainda novelas que retratam como trabalhadores foram atraídos para o garimpo, deixando a família pra trás. Histórias que eram exclusivas para a Amazônia. “Se a gente pensar no Brasil mais profundo, entendemos como o rádio desempenha um papel muito importante. As radionovelas são frutos da relação que a emissora construiu com os ouvintes”.

EBC

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