João Baptista Herkenhoff: Edna

Decisão libertando Edna, a que ia ser Mãe
 
                                                         João Baptista Herkenhoff
 
“A acusada é multiplicadamente marginalizada:
por ser mulher, numa sociedade machista;
por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta;
por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo;
por não ter saúde;
por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este Juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia. 
        É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.
         Quando tanta gente foge da maternidade;
quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas;
quando se deve afirmar ao Mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais;
quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si. 
         Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão. 
Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.
Expeça-se incontinenti o alvará de soltura.“
 
João Baptista Herkenhoff é magistrado aposentado (ES), palestrante e escritor. Seu mais recente livro foi A Fé e os Direitos Humanos (Editora Porto de Ideias, SP, 2016). 
A decisão acima transcrita foi proferida em nove de agosto de 1978.
 

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