Quais são os desafios na hora da alimentação
Fome, emoção, saúde, oferta de mercado. Entenda o que interfere e o que deveria interferir nas escolhas no momento de fazer as refeições
O Dia Nacional da Saúde e Nutrição foi no último domingo (31). A data faz parte do calendário do Ministério da Saúde. Entre a atividade física para ser mais saudável e a alimentação adequada sugerida por nutricionistas estão as emoções. Mas será que uma barra de chocolate, pizza, hambúrguer, uma taça de sorvete fazem muito mal?
Para muitas pessoas, situações de estresse e ansiedade transformam, em um passe de mágica, comidas altamente calóricas em necessidade básica de sobrevivência. Os mecanismos por trás desse movimento ainda não foram completamente compreendidos pela ciência. Mas já se sabe que, do desejo à primeira mordida, há uma cascata de reações químicas e um apreço cultural pelo que está no prato – mais do que saciar a fome, ela serve como se fosse um carinho.
Na área médica, há um termo específico para o hábito: “comer emocional” ou “fome emocional”, quando se recorre a alimentos, em geral calóricos (com muito açúcar, sal e carboidrato), para superar frustrações e cansaço.
Em inglês, se usa o termo “comfort food” (comida de conforto) para a refeição que, normalmente, é consumida só em ocasiões especiais, mas que acaba sendo desfrutada quando há algo de errado na rotina.
Normalmente, o prato é caseiro ou relembra memórias da infância com a família ou amigos. Não à toa, comerciais se esforçam em vender produtos artificiais com “o gostinho da vovó”.
Profissionais afirmam que está tudo bem em desfrutar de um chocolate, uma pizza ou uma taça de vinho com prazer. Em idosos, muitas vezes esse tipo de comida é oferecido justamente para casos em que a pessoa não se alimenta o bastante, sobretudo em vítimas de depressão.
Comer não é recompensa
É preciso prestar atenção se o hábito vira uma rotina e, todos os dias ao chegar em casa, você recorre à junk food (comida rica em calorias e de baixa qualidade nutritiva) para lidar com tristeza, raiva, tédio ou solidão. A longo prazo, se pode entrar em um ciclo vicioso e sempre buscá-la em situações complicadas. Surgem, por consequência, os riscos de uma dieta desregrada decorrentes do sobrepeso: diabetes, doenças no coração e Acidente Vascular Cerebral (AVC).
A nutricionista Amanda Della Giustina chama a atenção para o momento em que a alimentação se torna uma forma de fuga, alívio ou recompensa em situações do cotidiano:
– Isso pode indicar que a pessoa está enfrentando dificuldades em lidar com as emoções e problemas.
Uma pesquisa norte-americana e canadense feita com 277 voluntários apontou que, em mulheres, os catalisadores eram solidão, tristeza e culpa. No caso dos homens, por outro lado, entravam reações ao sucesso – como, por exemplo, cansaço após um dia estressante, porém produtivo.
No sexo feminino, estudos mostram que, com frequência, que o sentimento final é de culpa. Sobre elas, recai a pressão de atingir o corpo “perfeito”. A comida se torna refúgio, porque se dá a ela significados de prazer e alegria. Para muitos, refeições estão associadas a experiências positivas. Frequentemente, se celebra boas notícias ao redor da mesa.
Os turbilhões que o estresse desencadeia no ser humano
Há uma reação química desencadeada por situações de estresse que culmina na vontade de comer comidas gordas. O processo ainda não é bem compreendido pela medicina, mas existem algumas teorias.
Uma delas é de que a pressão no trabalho, a discussão com o parceiro(a) ou o problema do filho(a) na escola são situações desconfortáveis que, no cérebro, são interpretadas como ameaça. Sobem os níveis de cortisol – hormônio útil em situações de fuga ou de luta por aumentar os batimentos cardíacos –, para o oxigênio chegar mais rápido aos músculos e ao cérebro. Só que outra consequência é tornar o corpo resistente à insulina, hormônio que funciona como “porteiro” da entrada de glicose (alimento) para as células.
Uma vez que elas estão resistentes à insulina, é fabricado pelo organismo mais desse hormônio para compensar.
– Com muita insulina circulante no sangue, a reação do cérebro para que a glicose não baixe demais é pedir comida. E os alimentos que fornecem mais glicose são carboidratos complexos, presentes em farinha, arroz e batata – explica o médico endocrinologista, Rogério Friedman.
O estresse também ativa áreas do cérebro relacionadas à recompensa por comer, mostrou um estudo da Universidade de Deakin, na Austrália. Bruno Halpern, médico da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), afirma que pessoas que descontam emoções ao verem comida, ativam o sistema límbico, ligado ao hipotálamo, que é relacionado às funções básicas como fome e sede.
– O indivíduo vê o alimento e tem uma vontade muito grande de consumir. Pessoas obesas demoram mais para desativar essas áreas, então precisam comer mais para atingir o prazer. Mas é difícil dizer especificamente qual neurotransmissor é ativado. Já que não é possível abrir a cabeça e medir a quantidade presente – explica o endocrinologista.
O quase irresistível
O cérebro libera dopamina só de pensar em alguns tipos de comestíveis(Foto: Divulgação)
Há estudos relatando que a dopamina, neurotransmissor da sensação de recompensa, costuma ser liberada quando se ingere comidas com altos teores de açúcar, sal e gordura. Esse efeito seria ainda mais acentuado se, por experiências passadas, o cérebro registrou que, quando come chocolate, fica feliz.
Há estudos apontando que, em algumas pessoas, o cérebro libera dopamina só de pensar nestes tipos de alimentos.
A “cereja do bolo” é a serotonina, chamada de “neurotransmissor da felicidade”, cujos níveis sobem após a ingestão de chocolate, queijo e carboidratos. Mas não se sabe, se a produção dela ocorre por causa da refeição ou porque associamos que, ao comê-la, ficaremos mais felizes.
– Alimentos calóricos, doces e com gordura estimulam a liberação de serotonina, que tem ação antidepressiva – diz Rubens Gagliardi, ex-presidente da Academia Brasileira de Neurologia.
Isso também é provocado pela tiramina (presente em vinhos e cervejas). A indústria alimentícia também faz seu papel: produtos processados e crocantes, contêm glutamato de sódio, um tipo de sal que ressalta o sabor ao hiperestimular as papilas gustativas a ponto de não conseguir comer apenas uma unidade.
Existem estudos em andamento sobre a chance de se viciar em alimentos. Entretanto, a nutricionista Amanda Della Giustina afirma que não há provas em relação a isso. Ela relembra que os doces, por exemplo, trazem prazer e podemos buscar isso mais e mais vezes, mas a ideia de necessitar de doses maiores para ter a mesma sensação não são comprovadas cientificamente.
Nem todos descontam emoções no prato. Para muitos, a fome vai embora justamente em momentos de estresse e tristeza. Isso ocorre por várias questões, desde genética até uma história de vida em que comida não é associada positivamente.
O alimento como acesso ao passado
A comida se torna refúgio, porque damos a ela significados relacionados a prazer e alegria. Comer é, em suma, um ato cultural. Para muitas pessoas, refeições estão associadas à experiências positivas – frequentemente, comemoramos boas notícias com pessoas queridas ao redor da mesa.
Essa ligação é fortalecida se, ao longo da vida, criamos memórias agradáveis com a família na cozinha ou no bar. A consequência é a tendência a recorrer à comida para acessar os sentimentos do passado.
– Quando nascemos, a angústia inicial é a fome. Essa sensação passa com a amamentação, que, além de nutrir, também acolhe e tranquiliza. Essa memória fica armazenada e é resgatada em outras etapas da vida. A consequência é que, mesmo sendo demanda emocional, e não alimentar, o sujeito busca a comida como remédio – avalia Cláudio Martins, médico diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
As comidas gordurosas também podem servir como consolo – o estresse daria carta branca para recorrer a um “pecado” cometido em ocasiões especiais. O alimento preenche um vazio – em outras palavras, a felicidade de comer substitui a infelicidade.
– O indivíduo desconta na comida porque não tem um espaço interno emocional para absorver uma experiência difícil. Precisa descarregá-la em ato, e come – reflete o psicanalista César Brito.
Fome emocional não é compulsão
Não pense que descontar emoções em comida necessariamente significa ter compulsão alimentar, um transtorno previsto no DSM, um manual da área psiquiátrica com todas os doenças mentais catalogados pela medicina.
A compulsão alimentar, que pode ser periódica, costuma surgir no fim da adolescência, sobretudo em mulheres. Há fatores genéticos e sintomas específicos: a pessoa come tudo o que está pela frente, não sente saciedade e tem muita culpa após a ingestão. Outros transtornos psiquiátricos podem estar associados, como bipolaridade, ansiedade e depressão.
Na fome emocional, come-se um alimento desejado, há uma grande satisfação e a pessoa, por fim, não tem mais vontade de comer. A situação pode ser um sintoma da compulsão, ou mesmo um gatilho, afirma a nutricionista Amanda Della Giustina, relembrando que a doença psiquiátrica é diagnosticada através de exames feitos por especialistas.
Identificar a vontade
Uma das pacientes de Amanda reconheceu a fome emocional entre os hábitos praticados depois de passar por problemas pessoais. Eram momentos de muita ansiedade, sempre à noite, em que a tensão e a tristeza só amenizavam depois da ingestão de alimentos como pizzas, massas, calzones – em grande quantidade.
A mulher, de 42 anos, faz acompanhamento psicológico e nutricional há três anos. Como tempo, ela aprendeu a se dedicar à leitura de um livro, um banho relaxante ou então, a exercícios de pilates. Atualmente, ela percebe os indícios de que a fome é emocional e não física.
Reconhecer os gatilhos que levam a pessoa a comer por “recompensa” é um processo de autoconhecimento, por isso Amanda recomenda acompanhamento psicológico para auxiliar nas identificação de emoções e situações que estimulem o comer guiado pelos sentimentos.
A nutricionista indica duas perguntas para avaliar se a fome que sentimos é emocional ou física: A necessidade de comer é para saciar a vontade fisiológica ou é para matar o desejo de um alimento específico? Estou planejamento me alimentar tranquilamente ou sinto uma vontade urgente e incontrolável de comer? Se você escolher as segundas opções como respostas, a comida não é para saciar somente a fome.
Ainda assim, é diferente ter o desejo de uma refeição em específico ou querer descontar as emoções no ato da alimentação.
– Uma coisa é esperar pela lasanha da avó no fim de semana. Outra é comer uma lasanha congelada em casa por uma vontade incontrolável. Quando há impulsividade, o indivíduo está descontando na comida. Senão, é um desejo – esclarece a nutricionista Aline Quissak, especialista em psicologia da nutrição e também em síndrome metabólica.
A conclusão que fica é: se comer é um dos prazeres da vida, aproveite. Mas com moderação.