Artigo: Então todos o abandonaram e fugiram (Mc 14,50)
Dom Pedro José Conti
Bispo de Macapá
Chegamos à semana central do Ano Litúrgico e decisiva para a nossa fé. Se nos dias que precedem o Natal somos distraídos pelas compras e a correria de final de ano, a Semana Santa pode passar despercebida simplesmente porque estamos ocupados com nossos afazeres, no trabalho, na escola, na diversão. Talvez iniciamos a Quaresma com boas intenções, mas os compromissos e as preocupações nos fizeram esquecer os propósitos. Ainda estamos em tempo para não deixar passar, inutilmente, estes dias tão importantes para manter acordada a nossa vida de cristãos. Antes, porém, é necessária uma pequena consideração sobre os tantos gestos que faremos e as muitas palavras que ouviremos nos próximos dias. A “liturgia” que celebramos é, justamente, feita de “gestos e palavras”, porque quer envolver inteiramente a nossa pessoa. Nós não nos comunicamos somente com palavras, usamos muitos gestos, sinais e até o silêncio transmite alguma mensagem. Não podia ser diferente com a experiência da nossa fé, porque nós acreditamos que o próprio Deus se fez conhecer através de palavras e acontecimentos e, de maneira única e extraordinária, com a vida, os gestos, as palavras, a morte e ressurreição de uma pessoa: Jesus. O convite, portanto, para esses dias, não é somente aquele costumeiro de participar das celebrações, mas de prestar atenção a tudo aquilo que a Liturgia nos propõe fazer. Perceber o valor dos sinais e interiorizar o sentido dos gestos ajuda a compreender o “mistério” humano e divino que estamos celebrando. Com os olhos e os ouvidos da fé, com o coração aberto e sincero, acompanharemos Jesus no caminho da cruz para chegar a reconhecê-lo vivo e ressuscitado no domingo de Páscoa.
Iniciaremos com a procissão dos Ramos cantando Hosana ao Filho de Davi, mas na leitura mais longa da Paixão do evangelista Marcos ouviremos que “todos o abandonaram e fugiram” e o povo gritando a Pilatos: “Crucifica-o”. Continuamos a ter medo da cruz, medo de perder a nossa vida, a não entender o que significa ser fiéis até o fim. Na Quinta-feira Santa, faremos a memória da última Ceia, da entrega da Eucaristia aos discípulos. Receberemos aquele Pão e aquele Vinho, o Corpo e o Sangue de Jesus, sinais da sua presença viva e memorial do seu amor sem limite e exclusões. Como não ficar tocados com o gesto do Lava-pés e as palavras-convite a seguir o exemplo do “Mestre e Senhor” que se fez servo e último de todos? Será uma lição viva para avaliar se estamos buscando poder, vantagens, bens, talvez, desprezando e prejudicando os irmãos mais pobres e humildes. Como “servir” e promover vida e dignidade para todos? Na Sexta-feira Santa, seguiremos Jesus no caminho do Calvário até aos pés da cruz juntos com Maria e o discípulo amado. Será um dia de penitência e jejum. Nos perguntaremos: como corresponder a tão grande amor e qual “salvação” nos trouxe o sangue derramado naquele momento extremo? Rezaremos por todos. Faremos uma grande oração “universal” para que a humanidade encontre o caminho da paz e da fraternidade, muito além das diversidades que nos separam e dividem. Enfim, no Sábado Santo, ao anoitecer, celebraremos a grande Vigília Pascal. Faremos memória também da Páscoa antiga, a grande noite da libertação do povo de Israel da escravidão do Egito, mas, sobretudo, celebraremos a Vida Nova que o Ressuscitado fez desabrochar em cada batizado.
Com a Ressurreição de Jesus, aprendemos que o sofrimento e a morte não são as últimas realidades que nos aguardam. A nossa fé deve ser uma luz que nos orienta na vida já neste mundo. Com efeito, se o medo da morte nos faz viver na defensiva para nos proteger ao ponto de agredimos ou matarmos os outros para resguardar a nossa sobrevivência, a esperança da ressurreição nos torna corajosos defensores da vida de todas as criaturas. Não viveremos mais dias buscando nos salvar sozinhos. Daremos um novo sentido à nossa vida e ela será mais plena e feliz quando nos amarmos uns aos outros, quando unirmos as forças para construir uma nova humanidade sem ódios e inimizades.
Em qui., 7 de mar. de 2024 14:14, Oscar Costa da Silva Filho oscarfilho.ap@gmail.com escreveu:
Este homem conhece o Pastor
Dom Pedro José Conti Bispo de Macapá
No término de um jantar em um castelo inglês, um famoso ator entretinha os hóspedes declamando textos de Shakespeare. Disse que, a pedido, estava disposto a declamar outros textos. Um tímido padre sugeriu que ele declamasse o Salmo 23(22). O ator respondeu que faria isso somente se o padre, depois, também recitasse o mesmo Salmo. O padre, um pouquinho acanhado, aceitou o desafio. O ator interpretou o Salmo maravilhosamente: “O Senhor é o meu Pastor, nada me falta…”. Ao final, todos aplaudiram. O padre, então, também começou a recitar as mesmas palavras do Salmo. Quando terminou, não se ouviram aplausos, só um profundo silêncio. Também se viram discretas lágrimas nos rostos de algumas pessoas. O ator, depois de guardar mais um pouco de silêncio, tomou a palavra e disse: “Senhoras e senhores, espero que todos tenham percebido o que aqui se passou nesta noite: eu conhecia as palavras do Salmo, mas este homem conhece o Pastor!”.
No Quarto Domingo da Quaresma, encontramos um trecho do diálogo entre Jesus e Nicodemos que está no 3º capítulo do evangelho de João. É nesses momentos que Jesus abre o seu coração e explica muitas coisas. Ele diz que o Filho do Homem será “levantado” como naquele episódio da serpente de bronze, que encontramos no livro dos Números 21,4-9. Quem olhava para a serpente “ardente” era curado das mordidas mortais das cobras. O ser “levantado” é uma clara referência ao levantamento na cruz. Se quisermos viver – ou ser salvos – devemos crer em Jesus, o Filho unigênito que o Pai enviou. Ao contrário, estaremos na morte – ou condenados. A “boa notícia” é que o Filho do Homem não veio para condenar o mundo, ou seja, fazê-lo ou deixá-lo morrer, mas veio para salvá-lo e todos aqueles que nele crerem terão a “vida eterna”. O “julgamento” já está acontecendo porque “a luz” – ou seja Jesus – “veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas” (Jo 3,19).
Encontramos, aqui, algumas das contraposições típicas do Evangelho de João: vida e morte, luz e trevas, salvação e condenação, verdade (bem) e “más ações” e, no “mundo”, aqueles que acreditam e aqueles que se recusam a acreditar. A mensagem do evangelho é um convite à decisão que cada um deve tomar a respeito de Jesus. Como naquele tempo, ainda hoje, ninguém está condenado ou perdido de antemão. A possibilidade de conhecer Jesus e acreditar nele é oferecida a todos, mas alguns dão a preferência às trevas e odeiam a luz. Surge de imediato a pergunta: de qual “vida” Jesus está falando e de qual condenação? Porque com certeza todos nós, acreditando ou não, vamos morrer. É nessa altura que entra em campo a fé no Filho do Homem, não como um seguro contra a morte, porque ele mesmo irá morrer, mas como certeza de uma vida “eterna”, que somente Deus pode dar a quem acreditar e confiar nele. O mais importante da questão é entender que o “julgamento” do qual fala o evangelho não acontecerá após a nossa morte e que Jesus não está falando do céu, mas desta vida que passa. A fé não serve mais depois desta vida, porque poderemos já estar, ou não, contemplando as maravilhas de Deus. A fé deve ser agora, já neste mundo, aquela luz necessária para que tomemos a decisão de confiar em Jesus enviado do Pai. A vida “plena”, a comunhão com Deus, no qual resolvemos acreditar, começa aqui, no nosso dia a dia, no nosso agir à luz do bem e da verdade e não na escuridão de más ações que serão desmascaradas. A “vida eterna” ou “vida plena” que Jesus promete a quem acreditar nele, não é questão de duração no tempo, mas de intensidade da fé, da esperança e do amor, que só podem aumentar ao passo que crescemos na familiaridade com ele, seguindo os seus passos e atraídos pelo seu exemplo. Conhecer Jesus é muito mais que decorar fórmulas de fé, saber dar explicações brilhantes ou sustentar debates doutrinais. Qualquer um que tenha lido ou estudado um pouco pode fazê-lo. Crer em Jesus é arriscar sobre a sua palavra. Aprender a recitar um Salmo é fácil, conhecer e confiar no Pastor do qual o Salmo fala, é outra coisa. É uma questão de “vida”.