Ex-capitã diz que a geração atual do futebol feminino é melhor

Aline Pellegrino destaca importância da base para futebol feminino

A bola corre no gramado do Sesc Interlagos, zona sul de São Paulo. Temperatura acima dos 30 graus. Vinte e duas meninas em campo e outras tantas ao redor — mais de 30 — esperando. Uma espectadora de luxo, no alto de seu 1,80m, admira a partida de futebol feminino com um sorriso de orelha a orelha.

“Quando que a gente teria cinco equipes de campo, com mulheres, ocupando um gramado onde, por anos, só homens jogaram? De campo, não de salão!”

Aline Pellegrino tem motivos de sobra para apreciar a vista proporcionada por jovens de coletivos e comunidades da capital paulista que participavam de um festival de futebol feminino do programa Sesc Verão. Nunca a modalidade que vivencia há mais de 20 anos esteve tão em evidência.

E olha que ela passou por muita coisa. Começou a jogar aos 15 anos, em 1997, pelo São Paulo, com jogadoras que tinham idade para ser sua mãe. Foi capitã em parte da década que defendeu a seleção brasileira, entre 2004 e 2013. Usou a braçadeira, inclusive, em um dos grandes momentos da geração que também apresentou Marta, Cristiane e Formiga: o vice-campeonato mundial em 2007, na China. Fez parte, também, da equipe medalhista olímpica de prata em Atenas, na Grécia — ah, aquele toque de mão da zagueira norte-americana na prorrogação, que a arbitragem nada marcou…

Pendurar as chuteiras em 2013 não significou à Aline ficar longe do esporte. Formou-se em Educação Física, foi técnica (por seis meses, dirigiu o Vitória das Tabocas logo após se aposentar dos gramados), supervisora da parceria entre Corinthians e Audax no feminino. Há quatro anos, assumiu a direção da modalidade na Federação Paulista de Futebol (FPF), onde tem como uma das bandeiras o trabalho com novas gerações — para 2020, por exemplo, prevê a criação de um Estadual sub-15.

Antes das pelejas, Pellê bateu papo e distribuiu atenção e carinho às meninas, muitas emocionadas — para algumas, foi a primeira vez — de estar tão perto de uma das vozes mais ativas do futebol feminino do Brasil. E entre uma jogada e outra do festival, Aline conversou com a reportagem da Agência Brasil.

Em quase 25 minutos de entrevista, a ex-zagueira falou sobre os desafios históricos do futbol feminino e o avanço dos últimos anos. Cravou, “sem medo de errar”, que a nova safra é melhor que a dela — e olha que estamos falando de Marta, Cristiane e companhia. Revelou a tentativa para que, pelo menos nos jogos entre as mulheres, a medida de torcida única nos clássicos paulistas, tomada pelo Ministério Público em 2016, seja repensada.

Confira os principais trechos da entrevista:

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Agência Brasil – Deu para ver a emoção dessas meninas de poder tirar uma foto contigo, dar um abraço, e a sua empolgação de estar e falar com elas. Quando você começou, talvez não tivesse uma referência, alguém para se espelhar. Hoje, elas têm você, Marta, Cristiane, Tamires, Andressinha…

Aline Pellegrino – Elas saem daqui felizes e eu saio ainda mais forte, aprendendo sempre. Principalmente podendo falar para elas o que, às vezes, as pessoas não falam: vocês estão fazendo a diferença. Vocês estão aqui, lutaram tanto quanto eu para estarem nesse espaço. Fico muito feliz, é muito rico, aumenta a responsabilidade. Acho que, cada vez mais, a gente vai ter muitas mulheres ocupando esses espaços, sendo exemplo, deixando essa porta aberta e trazendo mais mulheres para dentro.

Agência Brasil – De fato, se a gente resgata a história do futebol feminino brasileiro, lembra que as mulheres foram impedidas de jogar por mais de 40 anos (decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941, vigente até 1983). Hoje, até há mais técnicas, como a Tatiele Silveira (Ferroviária) ou a Patrícia Gusmão (Grêmio), e dirigentes, como você, a Cris Gambaré (Corinthians) e a Many Gleize (Vitória). Mas, o ambiente da própria modalidade, fora de campo, ainda é dominado por homens. O quanto essa proibição de quase meio século impacta nisso?

Pellegrino – Acho que não dá para falar de futebol de mulheres no Brasil e desenvolvimento da categoria sem falar dessa proibição. Ela trouxe um atraso muito grande no desenvolvimento dessas mulheres em todas as áreas. Se você não podia ser atleta, estar no campo, por que iria querer ser árbitra? Ser técnica? Preparadora física? Quando me perguntam o porquê de poucas mulheres no futebol, eu respondo: a gente nunca foi estimulada, não era representada para isso. Agora, é um novo momento. E talvez, no mesmo peso, exista um atraso na parte cultural. Muito de a gente demorar para se desenvolver e até hoje ter essa dificuldade é porque foi falado para a sociedade que aquilo (futebol) não era para mulher. Então, quem quer investir na mulher jogando? Quem quer transmitir a mulher jogando? Foram prejuízos tanto dentro como fora de campo. Um atraso muito grande para se desconstruir em pouco tempo. Mas, acho que daqui para frente, é lembrar que teve luta, que houve mulheres que sofreram muito mais que a minha geração, porque jogaram em um momento de proibição e sofreram mais preconceito, e que a gente só chegou aonde chegou por conta delas.

Agência Brasil – O futebol feminino brasileiro, hoje, começa a olhar mais para a necessidade de categorias de base. Uma realidade diferente daquela que a sua geração teve no fim dos anos 90, não é?

Pellegrino – Eu falo com muita tranquilidade, sem medo nenhum, que essa geração atual é melhor que a nossa. Tecnicamente, taticamente, em entendimento de jogo… A nossa tinha outras características. Lutar, encarar (os jogos) realmente como um prato de comida, porque você não sabia se no outro ano teria campeonato, teria time, se teria salário para as que já recebiam na época. Trabalho de formação? A gente não tinha isso. Eu nunca joguei com meninas da minha idade. Joguei com meninos, muito nova, e depois, já adolescente, com mulheres adultas de 25, 30, 40, 45 anos. Marta, Maurine, Cristiane, Bagé, Renata Diniz, Renata Costa, Bárbara… São meninas que têm uma carreira, mas sofreram por falta desse desenvolvimento técnico, dessa construção. Há etapas, né? Do mesmo jeito que vamos construindo nossa parte cognitiva, a formação do atleta também funciona assim. Há coisas importantes para acontecer dos oito aos 12 anos, dos 12 aos 14, e a gente acabou atropelando. O quanto isso não fez falta, talvez, na hora de disputar uma Olimpíada, uma Copa do Mundo, e faltou um pouquinho (para o título). Esse ano (em São Paulo), muito provavelmente, devemos ter um festival sub-12; um festival sub-14, que já vem acontecendo; um campeonato estadual oficial sub-15; um Estadual sub-17 que está indo para o quarto ano… Isto, daqui uns três, quatro anos, dá margem para termos um (Estadual) sub-20. Aí, a gente consegue começar a olhar para o que acontece no futebol masculino há uma vida. Naturalmente, elas vão aproveitar melhor (o novo momento), terão treinos melhores, vão trabalhar essa parte tática do jogo, e veremos esses frutos nas seleções sub-17 e sub-20, que têm equipes muito talentosas.

Agência Brasil – Esse ano, o Corinthians anunciou a profissionalização de seu time feminino. As meninas, portanto, passaram a ter a carteira assinada, como já acontecia em times como Santos e São Paulo. É consequência desse novo momento?

Pellegrino – A gente vê que as coisas estão caminhando. Óbvio, para mim faz muita diferença você jogar 16 anos, parar, ir para o mercado e as pessoas acharem que você não fez nada. Isso (profissionalização) é muito importante para essa nova geração. Já acontece há algum tempo, mas, claro, não em todas as equipes. Mas, acho que o que a gente tem de brigar muito, seja em competição ou clube, é que a atividade seja mais profissional. Que se respeite a atleta, dê estrutura, condição. Pode não ter condição de assinar a carteira no momento, mas (proporcionar) todo o resto. Ela (jogadora) precisa receber de alguma forma e isso precisa ser registrado. Ela precisa de um plano de saúde… A gente, nesse momento, tem que brigar para que todos consigam ter isso no dia a dia. Aí, naturalmente, o caminho dos clubes é a profissionalização. Mas, não me sinto confortável de achar que dá para (a modalidade) caminhar sozinha. Todos têm que estar atentos. As atletas têm de entender, também, o papel delas nesse momento, ter muito profissionalismo, mostrar o melhor que as mulheres têm. E que jogam muito.

Agência Brasil – A determinação da CBF, a partir do ano passado, para os times da Série A do Campeonato Brasileiro masculino terem elencos femininos trouxe mais clubes tradicionais para a modalidade. Historicamente, o futebol feminino do país tem, como protagonistas, equipes consideradas de menor expressão nacional, como Ferroviária, Iranduba, Kindermann ou São José, tricampeão da Libertadores. Considerando o peso dessas “novas” camisas nos campeonatos e a capacidade de investimento delas, esse protagonismo tende a mudar?

Pellegrino – Se a gente for fazer um paralelo com o futebol masculino, vai falar que é uma tendência que aconteça, mas, acho que o futebol feminino é diferente. Se olharmos para (o Estado de) São Paulo, quem mais se destaca são as equipes do interior, ditas menores. São essas equipes que fomentaram o futebol feminino. Elas não podem acabar. Têm características diferentes, parceria com prefeituras, então têm um investimento menor. Mas, eu acho que ainda estamos longe de correr o risco de elas saírem completamente do certame. Acho que, naturalmente, conforme estamos crescendo, amanhã ou depois, é um sonho ter uma primeira e uma segunda divisão (no Paulista Feminino), então acho que vai ter espaço para todo mundo se encaixar, continuar existindo e fazer o que faz bem.

Agência Brasil – No bate-papo com as meninas, você comentou sobre a intenção de buscar o fim da torcida única nos clássicos paulistas, ao menos, para os jogos do feminino. Citou como exemplo a postura da torcida do Corinthians na final do último Campeonato Paulista feminino diante do São Paulo, aplaudindo o rival na hora da premiação, tirando foto com a Cristiane (que defendia o Tricolor)…

Pellegrino – A premissa de olhar para o futebol como futebol, não “homem” ou “mulher”, é boa. Mas, acho que interfere no nosso processo de desenvolvimento, de ter a torcida. A gente está começando a trazer esse público para o estádio. É um público diferente (o do futebol feminino), então me parece que dá para essa medida do Ministério Público não valer também para o feminino. Mas, isso é bem complicado. É uma questão jurídica complicada. Para conseguir qualquer alteração, gasta-se muito tempo. É preciso entender como fazer, mas, é algo que a gente, enquanto Federação, está atento. Acho que a final do Paulista mostrou muito isso. Tinham quase 30 mil pessoas. Não era uma torcida que fica os 90 minutos xingando técnico, é outra pegada. Agora, eu, principalmente, preciso trabalhar muito nisso, buscar o sentimento, aquilo que realmente aconteceu ali (na final do Paulista), materializar isso e ver quais as estratégias para mostrar ao MP que ali cabe… Torcida.

EBC

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