Amapá: Da cegueira ao caos
Depois que a bendita luz elétrica voltou, entre 4h:30 e 5h, vou ao banheiro e tomo um banho merecido. Depois de enxuto e vestido, preparo o café, uma tapioquinha no fogão, e miro a geladeira, e recebo dela a impressão de que ela estava tão feliz, que demorou a “disparar”. Vou em direção ao meu notebook, e passando rápido pela minha biblioteca particular, vejo a obra de Saramago, “Ensaio sobre a cegueira”.
A obra retrata a história de uma cegueira geral que se espalha por uma cidade e atinge um enorme número de pessoas, causando um grande colapso dentro da sociedade e obrigando todos a viver de uma maneira totalmente fora do comum. As personagens principais são levadas a um manicômio, onde ficam presas com centenas de outros detentos e sofrem com a cegueira, vivendo conflitos enormes. É aí que o autor, Prêmio Nobel de Literatura, consegue explorar mais profundamente o que as pessoas são capazes de fazer para sobreviver em um lugar em que cada um tem de buscar se adaptar para se manter de pé e conseguir manter viva a esperança de voltar a enxergar.
Terça-feira, 3, por volta de 20h40, após assistir ao noticiário local da TV, em nosso apartamento, eu e a Lilly, minha querida companheira, passamos a sentir a luz tremer… e de repente, escuro total. Moramos num pequeno condomínio situado no bairro Jesus de Nazaré. Acompanhado da escuridão, veio sobre nossa cidade uma chuva bastante pesada, com direito a trovões e raios caindo em todo lugar. Mesmo chovendo, o calor foi insuportável, mas sentíamos a esperança de que a luz vinha logo; e não veio. Fomos com as crianças ao nosso quarto, abrimos uma pequena janela que dá para a caixa d´agua do condomínio, e só ouvíamos os clarões dos relâmpagos seguidos dos barulhos constantes dos trovões.
As crianças estavam apavoradas; nós estávamos com temor de que a água fosse embora, porque é um pequeno sistema de poço artesiano que serve todos os moradores do pequeno condomínio.
Me lembrei do balde do banheiro e comecei a encher. Enchemos, eu e Lilly, todas as nossas panelas e vasilhas de plástico, e passamos a noite inteira sem dormir direito, no escuro, com todo o barulho dos trovões. Nossos celulares começaram a avisar que as baterias poderiam pifar a qualquer momento, e a noticia de que uma subestação de luz da Zona Norte pegou fogo. Abri o notebook para recarregar os celulares, e para surpresa nossa, havia somente 10% de carga…. enfim, só a volta da energia elétrica solucionaria nossa vida.
Pela manhã, nada de energia; fomos abrir as torneiras da pia e o chuveiro do banheiro, e para surpresa nossa… a água acabou. Após esvaziarmos os baldes, tivemos que usar nossas reservas de água mineral de três garrafões para lavar pratos, panelas…. E os minutos passaram, já neste segundo dia, e nada da luz. Assim ficamos ilhados, sem comunicação, porque as reservas elétricas, juntamente com um pouco de nossas esperanças, acabaram.
Minha família e os vizinhos começamos adaptar nossa vida nesse segundo dia. Abrimos a geladeira, e a alimentação começou a exalar um mau-cheiro. Tivemos que descartar os alimentos, entre carne vermelha e de frango, peguei meu cartão de débito e fui tentar comprar alguma coisa. Nos mercantis da Rua Leopoldo Machado, que dá acesso ao condomínio, só comerciantes reclamando que tiveram que jogar fora as reservas que estavam nos freezers. Pedi uma alimentação em conserva, e outros alimentos para improvisarmos um almoço, e na hora de pagar, o aviso da dona Maria, de uma padaria e mercearia, de que as maquininhas não estavam mais funcionando.
Corri aos caixas eletrônicos de farmácias, e todos eles, por falta de energia elétrica, não funcionavam. Assim, sem dinheiro em especie, voltei para casa e contei sobre o ocorrido para a esposa. Um confortou o outro. Graças a Deus a dona Maria me passou uns mantimentos para pagar depois.
Almoçamos no escuro, no segundo dia, bebendo água quente, e pensando como passar a segunda noite. Não houve outro meio, senão colocarmos nossa cama-boxe na sala, abrir portas e janelas, e apenas colocar cadeado no portão de entrada do nosso apartamento. Assim dormimos com portas e janelas abertas, sempre no escuro. De repente, após queimar tanta vela, percebemos que não tínhamos mais parafina.
Quinta-feira 5: acordo cedo e vou atrás de velas, para podsemos passar a noite pelo menos com um pouco de luz. Nada do produto para venda nos mercantis do bairro. A senhora da mercearia me deu uma boa noticia: havia guardado uma caixa de velas para mim. Ela me entregou, peguei biscoitos, bolachas e carnes em conserva, e voltei para casa. Mais uma noite sem luz e sem água; e desta vez resolvemos dormir no quarto mesmo, um cuidando do outro, e os dois cuidando das crianças para que elas ficassem em paz. Assim passamos a terceira noite sem água na torneira, sem água gelada na geladeira, e sem luz. Sem comunicação nos celulares.
Sexta-feira 6: eu e os moradores estávamos tentando improvisar a retirada da égua do poço artesiano; alguém trouxe uma bombinha de encher colchão de ar, manual, e assim, com o auxilio de uma mangueira, e muito esforço, começamos a retirar água do poço; e aos poucos fomos enchendo as vasilhas de cada moradora. Ficamos muito felizes com isso. Mas via muita tristeza nos olhos da Lilly, que não conseguiu falar ainda com sua mãe, que mora em Vitória do Jari, e onde está a bebê caçulinha que há meses não vê.
A Suely, minha irmã, veio me visitar no dia anterior rapidamente, mas teve que ir logo, pois estava numa fila quilométrica aguardando sua vez para abastecer seu carro de combustível.
Para surpresa minha, recebo a noticia de duas contas de luz: uma vencida, no valor de R$ 400,00, e a próxima a vencer, de R$1.250,00, e tudo isso, num apartamento em que passamos um ano pagando tarifas entre R$ 27,00 e 30,00. Fiquei assustado com a noticia, bem no meio desse caos todo.
E nesta mesma manhã de sexta-feira aparece o meu filho que mora em Macapá, me procurando. Vendo o meu sufoco, passou um auxilio financeiro para comprar alguma coisa, inclusive gás. Vou aos mercantis e supermercados, após comprar uma cuba de isopor para colocar gelo em cubos, e os locais de venda estavam vazios. Pela noite recebo a visita da minha sobrinha Juliana, que com seu marido Robson trouxeram uma garrafa de água mineral gelada, e bastante vela. Com um radinho a pilha ligado, presente do meu filho, sintonizei na única emissora que estava no ar, e passamos a ouvir as noticias, entre elas, a de que desta sexta para sábado o abastecimento de luz iria normalizar, mas ainda de improviso, em 70 por cento..
Novamente dormimos no escuro, bebendo água quente e comendo carne em conserva até que, às 4h50 a luz finalmente chega. Não ouvi muito brado da população, se bem que alguns soltaram uns nomes feios saídos da goela, porque não aguentávamos mais tanta dor.
Enfim, parou mais a cegueira momentânea que assolou nossas vidas, porque, cegos de tristeza, dor e ódio, não conseguíamos, antes, raciocinar, sem contar dos “memes” que vinham até nós, de que só teríamos energia elétrica daqui a quinze dias, entre outras coisas. Acompanhado a isso, a tristeza dos pequenos comerciantes, no inicio deste quarto dia de sofrimento, a maioria se lamentando ter jogado carne e outros alimentos fora, saídos dos freezers.
Mas a luz veio; já há ações no Ministério Público Federal para apurar o que, de fato, aconteceu. Mas também começam a aparecer as “lembranças” de supostos “pais da criança” – nesse clima de campanha politica — em dizer que, graças às suas ações, a luz elétrica foi restituída à população de nosso Estado que já amarga, historicamente, o isolamento rodoviário com qualquer outro Estado.
Na realidade, esses “ensaios” pelos quais passamos, de nossas cegueiras e memórias frágeis de reter episódios tristes, com o passar do tempo nos acrescentarão aprendizados drsses sofridos momentos que passamos. Soubemos depois que já há grupos se organizando para fazer as manifestações contra estes momentos de terror a que fomos submetidos. E tomara que não nos esqueçamos de tudo o que nos aconteceu, até mesmo dos cuidados necessários à prevenção do Corona Virus, pois as máscaras, principalmente dos políticos do Poder, passaram a cair diante de tudo isso; e assim, as desativações das UBS que socorriam os casos novos de pacientes da Covid, se somaram à cegueira dessas mesmas autoridades na remediação desse caos total.
Estamos com a luz restabelecida, mas sempre há a possibilidade de ela ir embora de novo, pois são somente 70% de eficácia, e não foi em todo o Estado que ela voltou, e há possibilidade de se fazer um revezamento, nesse movimento de liga-desliga-liga, para que, nesse percentual, todos sejam atendidos.
Diante dessas ameaças de cortes, e dos milhões de aumentos de taxa de luz, decorrentes desta demoníaca empresa de distribuição de energia, que aumentou mais de 800% nossas tarifas, e do desabastecimento quase total da cidade, estamos novamente com essa luz que voltou… e diante da torcida geral das populações de outros Estados solidários, nossa esperança é que tudo melhore, e que possamos dar nossas respostas também, diante das vésperas do acontecimento dos disparos de nossas armas eleitorais, entre elas o voto, num consciente goze de nossos direitos, também, de protestar.
Sábado 7 de novembro. Que esta luz elétrica permaneça neste dia e na noite que vem, para que possamos descansar um pouco, comprar alguns víveres alimentícios, e seguir a vida que continua, e as horas as horas a rolarem… nas entrelinhas do tempo, que sempre será o senhor da Razão.
Edgar Rodrigues, jornalista.