Euclides Farias: Tim Maia, a última polêmica

Ao arranjar no céu um tempinho entre seus mil afazeres celestes e terrenos, Deus tira o telefone do gancho e disca um número qualquer da Terra.

Brasil, Rio de Janeiro, Tijuca, 11 da manhã. O telefone toca insistentemente, acordando o dono de um vozeirão mal-humorado:

– Qual é, pô? A esta hora da madrugada?

– Aqui quem fala é Deus. E aí, é o Tim Maia?

– Pô, mermão, trote a esta hora? Você não tem mãe, não?

– Não, nunca tive. Mas esse não é o caso. E não duvide de mim. Sou mesmo Deus.

– O Todo-Poderoso?!!! – espanta-se Tim, agarrado à dúvida que suscita aquela voz grave, empática e convincente.

– Dizem – responde Deus, mergulhado em modéstia.

O interlocutor terreno, um eterno contestador, acende o desconfiômetro e pede uma prova da autenticidade da ligação.

– Desde quando você não paga a conta da Telerj?

– Meu Deus!!!

– Ele mesmo. Mas vamos deixar de cerimônia porque o meu tempo é curto. Tenho um probleminha aqui no céu e gostaria de sua presença urgente. Gosto de sua música e do plágio que você criou com a minha voz. Mas gosto mais ainda do músico de mil instrumentos e quero que você venha reger a orquestra celestial.

Tim Maia emudece no outro lado da linha. Pensa nos tantos convites e contratos que deixou de honrar. Mas faltar a este?!!! Como driblar o Homem? Reger querubins, ai meu saco. Decide-se:

– Senhor, com todo o respeito, eu não vou. Hoje tenho um show, pagamento adiantado, contrato com televisão. É coisa séria. Esse pessoal da imprensa é fogo. Faltar vai dar um rolo danado. Além disso, tocar harpa não faz muito a minha cabeça.

– Eu sei o que faz a sua cabeça…- diz Deus, sarcástico. E prossegue:

– Não tem jeito, a escolha está feita. Você é o síndico e pronto.

Polemista, arredio a viagens aéreas tão demoradas, Tim resolve radicalizar:

– Não vai dar não, me desculpe – diz, desligando o telefone e experimentando uma estranha mistura de ressaca física com uma ressaca de outra ordem, mágica e incontrolável.

É noite. A cabeça de Tim está a mil, o show começando. O público delira, o cantor dá uma olhadela fulminante para a orquestra e se encosta ao microfone:

– Vou pedir…(pra Você voltar).

A letra da música, trocada de propósito, não sensibiliza Deus, postado na primeira fila.

– Vou pedir…- insiste.

Não adianta. O coração dispara, o ar fica rarefeito, a vista turva. Tim capitula, silenciosamente. Levanta os dois braços, teatralmente. A orquestra, temendo um esporro, continua tocando, e ele se afasta do palco, ofegante e contrariado.

Trava-se a partir daí uma batalha. No hospital, novo diálogo. Desta vez, ao vivo, na solidão e na penumbra da UTI. Espírito, Deus dá o ar de sua graça em forma de ectoplasma:

– Você poderia ter evitado vexame…

Exigindo coisas menos chata do que reger anjos, Tim reúne as forças da resistência, até então posta contra a hipocrisia nacional, e canta:

– Me dê motivo/Pra ir embora…

– O cachê é o melhor que você já teve na vida – diz Deus, sedutor.

– Não quero dinheiro/Eu só quero amar/Só quero amar…

– Dinheiro?!!! Nada disso. É algo muito melhor. Agora, ao trabalho!

– Eu não nasci pro trabalho/Eu não nasci pra sofrer…- canta Tim, quase num lamento, roubando os versos do sobrinho Ed.

Deus resolve encerrar a conversa ali mesmo. Não gastaria saliva com um simples mortal. Antes de se desmaterializar, o Todo-Poderoso dispensa àquele homem uma última palavra:

– Te espero lá.

Setenta e duas horas depois de os rins falharem e o coração parar de bater, Tim ainda não deu as caras por lá.

Deve estar parando de nuvem em nuvem para esculhambar os desafinados anjos arregimentados para recepcionar o mestre-descobridor dos sete mares, das sete notas musicais transformadas em pura emoção e dos sete dias que durou o bate-boca em vão com o Criador.

Nota do autor: Crônica publicada originalmente em O Liberal, de Belém, em março de 1998, três dias após a morte de Tim Maia.

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