Dom Pedro Conti: Eu também não posso entrar
Tem canções e músicas que se tornam sucesso e que fazem ganhar e autores ganhar muito dinheiro. Algumas desafiam os anos, outras não passam de uma estação. Outras, enfim, talvez, não tenham sido tão lucrativas para o artista, mas marcaram uma época e continuam a propor a sua mensagem a quem quiser entendê-la. Esse é o caso, ao meu ver, da canção “Cidadão” de Zé Geraldo. Vou lembrar o conteúdo dela para os mais jovens que talvez curtam outros tipos de músicas e em outras línguas. É a história de um humilde pedreiro que fugiu da seca e foi trabalhar na cidade grande. Construiu prédios e colégios, mas, por ser pobre, nem ele e nem os seu filhos puderam entrar naquelas obras. Dá para perceber o gosto amargo da exclusão. Construiu também uma igreja e nesta, diz o texto: “Lá valeu a pena…o padre me deixa entrar”. Foi ali que, surpreendentemente, o próprio Cristo disse ao pedreiro para parar de ter medo das injustiças. Não está sozinho nesta situação porque também ele – o Senhor – em muitas casas já não pode mais entrar. Na última estrofe, Jesus canta assim: “Fui eu quem criou a terra/Enchi o rio, fiz a serra/ Não deixei nada faltar/ Hoje o homem criou asas/ E na maioria das casas/ Eu também não posso entrar”.
Cada um de nós pode dizer se isso é ou não verdade, pensando na sua casa, em primeiro lugar, mas entendendo, muito bem, que não basta um crucifixo ou uma qualquer imagem de santo ou santa para dizer que o Senhor está em nosso lar. Acolher Jesus, de verdade, é outra coisa. A ele interessa que estejam abertas as portas do nosso coração.
No evangelho deste domingo, o último antes da Quaresma e em pleno Carnaval, encontramos mais uma cura de Jesus. Desta vez, a doença é a lepra, que hoje chamamos de hanseníase, e que graças a Deus tem cura. Não era assim no tempo de Jesus. Por ser contagiosa e extremamente perigosa, a lepra condenava o doente à total exclusão do convívio humano. Além disso o preconceito e a exclusão eram também religiosos. A pessoa doente era considerada “impura”, como que rejeitada pelo próprio Deus, o qual, segundo eles, assim tinha determinado por alguma culpa dela. Ou seja: ela fez por merecer. No entanto, este leproso toma coragem, aproxima-se de Jesus e pede a cura, apelando ao seu poder, mas também à sua livre decisão: – Se queres… A resposta é imediata: – Eu quero: fica curado! Mas antes Jesus, cheio de compaixão, fez algo de inaudito: tocou nele. Mais do que correr o risco de ser contagiado, Jesus quebrou o tabu de quem considerava o leproso maldito por Deus e confirmou a sua missão: para o Deus-Pai que o enviou não existem filhos condenados e excluídos; aliás, é justamente a eles que ele, o Filho, deve revelar o amor divino. Eles são os mais amados e queridos.
Jesus paga caro por esse gesto. Dali para frente, também ele deve ficar fora da cidade, em lugares desertos. Ainda o povo vem de toda parte para procurá-lo, mas ele agora está marcado para sempre porque desobedeceu a uma lei oficial: tocou num leproso. Jesus tinha outra “lei”, muito mais importante, a quem obedecer: o amor aos pobres e aos sofredores. Assim, o evangelista nos antecipa que um dia ele será condenado pela desobediência à Lei dos doutores, escribas e fariseus e crucificado “fora da cidade”.
Ainda hoje, Jesus está fora de muitas cidades, de muitas casas e de muitos corações. Não falo do Jesus em pílulas suaves para autoconsolação, pronto-socorro para acomodados, milagreiro para preguiçosos, vendedor de bênçãos sem conversão. Falo do Jesus verdadeiro, aquele que incomoda, que ensina a fazer o bem aos pobres e aos sofredores, a todos os que precisam, sem esperar devolução, recompensa ou aplausos, mas, simplesmente, por reconhecer neles o próprio Senhor. É este Jesus, migrante, de rosto sofrido, de mãos calejadas, sem títulos, sem plano de saúde, sem amigos influentes, sem esperança, desiludido da vida, talvez sujo e maltrapilho, que não deixamos entrar em nossa vida. Ainda temos medo dele. É amigo de gente pouco recomendável. Que fique fora.
Ouça Cidadão de Zé Geraldo interpretada por Zé Ramalho