Expedição promove intercâmbio entre chefs de cozinha e manejadores de Pirarucu no Médio Juruá
“Imagina saber o nome de quem pesca aquele peixe que a gente vende?” Foi com essa expectativa que Roberta Azevedo e outros nove chefs de cozinha de vários estados desembarcaram no Amazonas e encararam mais de 20 horas de barco para chegar até a Comunidade São Raimundo, localizada na Reserva Extrativista (Resex) do Médio Juruá, no município de Carauari.
A expedição, que aconteceu em setembro, levou ainda representantes comerciais, financiadores, distribuidores, jornalistas, pesquisadores e assessores de organizações que prestam apoio técnico ao manejo do pirarucu, totalizando 60 integrantes na viagem.
Conhecer a origem do peixe amazônico que vem ganhando espaço no cardápio de renomados restaurantes, ver de perto os benefícios socioambientais e econômicos que o manejo sustentável do pirarucu proporciona para a floresta e para as comunidades ribeirinhas, além de potencializar a venda do pirarucu de manejo sustentável produzido no Amazonas, são alguns dos objetivos do evento.
“A expedição é uma oportunidade ímpar. A comunidade conhece os parceiros, que, por outro lado, podem ver a beleza do manejo. Nossos apoiadores também têm oportunidade de vivenciar a comunidade e conhecer de perto as etapas do manejo comunitário. Tenho certeza que ao conhecer a história e todo o processo aumenta a possibilidade de engajamento para que essa atividade cresça ainda mais”, afirmou Adevaldo Dias, presidente do Memorial Chico Mendes e assessor da Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc).
A viagem foi a segunda expedição organizada pela Gosto da Amazônia, marca coletiva criada pelo Coletivo do Pirarucu, e faz parte da estratégia para ampliação de mercado do pirarucu de manejo sustentável produzido no Amazonas. A primeira edição foi realizada em 2019, na Terra Indígena Paumari, onde participaram nove chefs do Rio de Janeiro e um de Manaus.
Comunidade São Raimundo – O destino escolhido para a segunda edição da expedição foi a Comunidade São Raimundo, localizada na Resex do Médio Juruá, no município de Carauari. Atualmente, 38 famílias moram na comunidade que, graças à sua forte organização social, se tornou uma espécie de incubadora das iniciativas comunitárias do Médio Juruá. O manejo do pirarucu começou a ser praticado na comunidade de São Raimundo em 2011 e o retorno econômico alcançado inspirou outras comunidades da região a aderir à atividade. Além dos benefícios econômicos, sociais e ambientais, o manejo promove também o empoderamento feminino através da participação ativa das mulheres, com ganhos equiparados aos dos homens.
“A partir do segundo ano de manejo, as mulheres foram envolvidas e foi estabelecido que o valor recebido por elas seria igual ao dos homens. Em todos os trabalhos aqui na comunidade as mulheres fazem parte, mas eu sempre falo que foi o manejo do pirarucu que despertou nelas essa vontade de ter autonomia no trabalho que fazem”, explica Quilvilene Cunha, tesoureira da Associação das Mulheres Agroextrativistas do Médio Juruá (ASMAMJ).
A participação das mulheres também chamou a atenção da chef Fabiana Lustosa, do Restaurante Sallva, de Brasília. “Ver nessa comunidade o equilíbrio do trabalho das mulheres e dos homens foi incrível. Vi que ali o empoderamento feminino realmente existe e foi 100% eficaz. Isso me surpreendeu muito!”
Intercâmbio de saberes
Para alcançar os objetivos da expedição, uma intensa programação foi preparada. Rodadas de apresentação dos participantes, palestras sobre o contexto histórico da criação da Resex do Médio Juruá e da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Uacari, além dos benefícios socioambientais e econômicos do manejo sustentável do pirarucu foram realizadas ainda durante a viagem de barco.
Já na comunidade foram feitas visitas às estradas de seringa, aos roçados, sistema de água, criação de tracajás e, claro, aos lagos de pesca do pirarucu. “A gente escuta muito falar que o manejo ajuda as comunidades, mas até a gente chegar não temos a mínima noção. Me impressionou muito o modelo de vida deles, de como vivem em comunidade. São Raimundo é um exemplo de organização, maturidade e liderança”, afirma Juliana Faingluz, chef do restaurante Mari Mari, em Manaus.
O jovem Raimundo Cunha, presidente da Associação de Moradores Extrativistas da Comunidade de São Raimundo (Amecsara), conta que a troca de experiências foi valiosa. “É gratificante principalmente para a comunidade, porque é uma troca de conhecimentos, né? Assim como os visitantes devem aprender com os comunitários, os comunitários também aprendem bastante com os visitantes.”
Encontro de sabores
Uma das atividades mais aguardadas da programação foi o almoço coletivo, onde os chefs prepararam receitas com pirarucu em oferecimento à comunidade e a comunidade preparou pratos típicos para os chefs. Ao total, foram servidos dez pratos, sendo quatro oferecidos pela comunidade e seis pelos chefs, num grande almoço com a presença de mais de 160 pessoas, entre convidados e comunitários. Manoel Cunha, liderança comunitária e gestor da Resex do Médio Juruá, saudou os chefs, ressaltando o sentimento envolvido no preparo da comida.
“Quando você recebe uma pessoa muito importante na sua casa, você prepara uma refeição para ela. E vocês são muito importantes para a nossa comunidade!”
‘Caldo grosso de tambaqui’ e ‘Guereré de tambaqui’ foram dois dos saborosos pratos oferecidos pela comunidade que mais fizeram sucesso. Já no cardápio dos chefs, os mais comentados foram o ‘churrasco de pirarucu’ e o ‘ceviche de pirarucu’, receitas que carregam influências de dois chefs.
“Eu quis preparar algo que é minha raiz, que é o fogo, né? A gente tem costume de servir um corte bovino com osso e essa foi minha inspiração”, relatou Priscila Deus, chef da rede de Restaurantes Pobre Juan, presente em 16 cidades brasileiras. Já o chef Daiti Ieda, do Restaurante Gurumê, do Rio de Janeiro, trouxe sua origem japonesa e ofereceu peixe cru, algo incomum para a culinária da comunidade. “Esse é o desafio para a comunidade, né? Eu fiz um ceviche oriental, cru, mas estava fresco e gostoso”, argumentou.
Comunidade ampliada, manejo fortalecido
“Esse tipo de trabalho que a gente vem fazendo tem como objetivo principal aumentar essa comunidade [do manejo do pirarucu]. Fazer com que os chefs que estão aqui, os clientes que comem nos restaurantes, os distribuidores que levam peixe até os restaurantes, todos façam parte de uma comunidade maior do que essa, complementar à essa e com o mesmo espírito”, comentou Sérgio Abdon, responsável pela área de promoção, marketing e eventos do Gosto da Amazônia.
Após a visita à São Raimundo, houve uma rodada de conversa onde os próximos passos e ideias para o fortalecimento da cadeia do pirarucu foram discutidos. Entre as propostas, a ideia de treinar equipes dos restaurantes para que possam entender a importância do produto, criar materiais para os consumidores, além de outras estratégias de promoção. Alguns chefs também se propuseram a desenvolver novos pratos com pirarucu para incluir em seus menus permanentes e pensar em novos cortes para melhor aproveitamento do peixe.
Para Priscila Deus, chef da rede de Restaurantes Pobre Juan, a expedição se tornou um aprendizado maior do que o esperado. “São Raimundo é muito unida em prol de fazer o bem não só pra comunidade, mas também para o meio ambiente. Eu vi uma preocupação muito grande com isso que eu não imaginava, sabe? Eu pensava que a comunidade só precisava da subsistência através do pirarucu e que eu viria aqui para conhecer de onde vem meu peixe. Mas é muito maior do que eu imaginava”, conclui.
“Precisamos cada vez mais valorizar o pescado e os insumos nacionais. Temos muita coisa boa, e o pirarucu é uma delas. Essa oportunidade está sendo única – vir, conhecer, aprender como é cuidado, como é tratado o pescado para em breve colocar no meu restaurante. Acho que é uma vivência sensacional. Conhecer de fato como é produzido, vivenciar isso junto com as pessoas que cuidam do pescado e de toda a linha de produção, isso vai ficar na memória para sempre. Com certeza vou multiplicar esse aprendizado com meu time”, comentou Daiti Ieda, chef do Restaurante Gurumê, no Rio de Janeiro.
A iniciativa da marca coletiva Gosto da Amazônia, criada pelo Coletivo do Pirarucu, é apoiada pela USAID/Brasil por meio do projeto Cadeias de Valor Sustentáveis, implementado pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), com assistência técnica do Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS) e participação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).