Ilhas de calor em Belém e Manaus são até 10ºC mais quentes do que áreas vizinhas de floresta
As capitais da Amazônia estão entre as menos arborizadas do país. Análise exclusiva da InfoAmazonia mostra a diferença de temperatura entre áreas arborizadas e não arborizadas nas duas capitais amazônicas.
Por Nicholas Miller
No bioma Amazônia, os cientistas estimam a existência de 390 bilhões de árvores. Mas, nas cidades, onde vive 70% da população da região, a sombra é exceção, não regra. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os municípios amazônicos estão entre os menos arborizados do Brasil, incluindo Belém e Manaus entre as dez piores capitais.
Uma análise exclusiva da InfoAmazonia identificou a presença generalizada de ilhas de calor urbanas nessas capitais — áreas com temperaturas significativamente mais altas do que as zonas rurais e de floresta próximas, chegando a registrar até 10°C de diferença em dezenas de pontos nas duas cidades.
Para chegar a esse resultado, foram analisados os mapas de calor gerados a partir de dados do satélite Landsat 8, acessados por meio do portal do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS), nas duas capitais da Amazônia Legal: Manaus (AM) e Belém (PA). A partir disso, foram criados mapas comparativos de diversos pontos urbanos em relação às áreas florestadas e rurais próximas às cidades.
Ao comparar os mapas de calor e de arborização, é possível observar que as árvores têm um impacto significativo na temperatura das cidades amazônicas. As áreas com cobertura vegetal frequentemente registram vários graus a menos do que regiões vizinhas tomadas pelo concreto.
Em Manaus, 41,7% da superfície possui cobertura vegetal; em Belém, esse índice é de 39,6%. Nossa reportagem mostra que a capital paraense, que receberá a COP30 neste ano, apresentou uma temperatura média 2,6°C mais alta do que a floresta ao redor — a comparação foi feita com a Área de Proteção Ambiental do Arquipélago do Combu, próxima à cidade. Além disso, em 17,1% da superfície de Belém, a temperatura média é ao menos 5°C superior à da área protegida vizinha.
Já em Manaus, a população convive com uma temperatura média 3°C mais alta do que a registrada na floresta ao redor — tendo como referência a Reserva Florestal Adolpho Ducke. Em 16% da cidade, a diferença é de pelo menos 5 °C. Mais de 85% da população da capital amazonense vive em bairros que, no momento da captura do satélite, apresentavam temperaturas de superfície mais de 3°C acima da área preservada.
As ilhas de calor se formam por uma combinação de características comuns do ambiente urbano. Superfícies de concreto e asfalto absorvem calor ao longo do dia, emitindo por horas mesmo após o pôr do sol. O trânsito intenso e os sistemas de ar-condicionado dos prédios também contribuem, liberando ainda mais calor. Ruas estreitas e edifícios altos dificultam a circulação do ar, aprisionando a quentura nas áreas urbanas. A poluição atmosférica gerada nas cidades intensifica o problema, criando um efeito estufa local que impede o escape do ar quente.
“O que é mais sentido pela falta de arborização num centro urbano são as temperaturas elevadas”, confirma Yêda Arruda, diretora do grupo de pesquisa Árvores do Asfalto, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em Manaus.
As árvores exercem um efeito de resfriamento. Além de criar sombra, elas ajudam a purificar o ar e contribuem para o resfriamento do ambiente por meio da evapotranspiração — o processo em que a água é liberada pelas folhas. Cidades arborizadas, portanto, conseguem mitigar ou até eliminar as ilhas de calor. Já aquelas com pouca vegetação enfrentam bolsões de calor intenso. Esse fator local piora ainda mais com o aquecimento global.
“A arborização não é tratada como uma prioridade” em Belém, afirma Rafael Salomão, pesquisador de arborização urbana do Museu Paraense Emílio Goeldi. Segundo análise da CarbonPlan e do The Washington Post, a capital do Pará teve menos de 50 dias de calor extremo em 2000, mas deve registrar 222 dias assim em 2050, o maior aumento entre as grandes cidades do mundo.
Pior nas periferias
Para Raimundo Rodrigo do Vales, vendedor de frutas no bairro Cidade Velha, em Belém, “a Amazônia deveria ser uma referência” em arborização urbana. No bairro onde ele trabalha, a cobertura vegetal é de 19,9%, segundo a análise da InfoAmazonia.
Vales diz que sente que a cidade está mais quente nos últimos anos e que ele vê isso diretamente no estado das frutas: “a banana apodrece rápido com a temperatura muito elevada”.
A distribuição de árvores dentro das cidades amazônicas é desigual: áreas periféricas costumam ser menos arborizadas e mais vulneráveis aos efeitos das ilhas de calor.
“Na periferia, quase não tem [árvores]. Só no Centro. Belém é conhecida como a cidade da mangueira. Mas é só no Centro”, conta o vendedor.
Moradores de áreas mais pobres muitas vezes não têm condições de construir suas casas com materiais mais frescos, como cerâmica, nem de instalar ar-condicionado ou arcar com os custos da energia elétrica necessária para usar um ventilador.
Sacramenta, uma área periférica, é o terceiro bairro mais quente de Belém, com temperaturas cerca de 5,5 ºC mais altas do que na Ilha do Combu, segundo análise da InfoAmazonia. O bairro também apresenta apenas 17,5% de cobertura vegetal, o oitavo mais baixo da cidade.
Dentro do bairro, um ponto particularmente escaldante se destaca: a movimentada Avenida Pedro Álvares Cabral, onde um grande shopping climatizado fica em frente a um estacionamento asfaltado e a um posto de gasolina, sem uma árvore à vista. Ali, os dados de satélite revelam que a temperatura da superfície chega a ser 8,6 °C mais alta do que na área protegida nos arredores de Belém.
“No Centro [de Belém] tem [árvores], mas pra cá, na periferia, não tem”, afirma Jefferson Pereira, morador de Sacramenta e vendedor de bilhetes de loteria na entrada do estacionamento do shopping há cerca de cinco anos. Ele também conta que, a cada ano, o calor parece piorar. Seus únicos auxílios são um guarda-sol, uma garrafa grande de água e uma brisa agradável que às vezes sopra pela avenida durante a estação chuvosa. No verão amazônico, o calor é ainda mais intenso.
Ana Luíza de Araújo, integrante do grupo Defensores dos Rios Urbanos — que atua na arborização do bairro da Terra Firme, em Belém, o quarto mais quente da cidade segundo a análise da InfoAmazonia — explica que o crescimento desordenado das áreas periféricas contribuiu para a falta de cobertura vegetal. “É o que, na geografia, a gente chama de deserto florístico: muita gente para pouca árvore”.
“Ao construírem suas casas, as pessoas acabam desmatando, derrubando árvores para poder construir suas moradias”, disse. “Mas isso também é resultado da falta de planejamento do poder público… As obras previstas para a periferia seguem muito a lógica da infraestrutura cinza, baseada em concreto e asfalto”.
Em nota, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Belém (SEMMA) afirmou que uma das maiores dificuldades na arborização da periferia “é a identificação de locais para plantio, considerando que há bairros que foram ocupados desordenadamente, restando poucas áreas para plantio”.
Em Manaus, a situação é semelhante, segundo Arruda, da UFAM. Ela explica que, com o estabelecimento da Zona Franca na década de 1960, uma grande quantidade de pessoas migrou para a cidade, provocando uma expansão urbana desordenada — um movimento que, segundo ela, ainda não foi encerrado. “Esse processo de ocupação também gera um problema muito grande em Manaus: não há área para plantar”, afirmou.
Mas mesmo em bairros que não se originaram do espalhamento dos assentamentos ou das invasões, ainda há carência de arborização.
O bairro Dom Pedro, em Manaus, foi planejado como um conjunto habitacional para trabalhadores na década de 1970. Hoje, ele quase não tem árvores, apesar das ruas retas e organizadas. Não por coincidência, segundo análise da InfoAmazonia, é também o bairro mais quente da cidade, com temperatura média da superfície 5,4 °C acima da registrada na floresta ao redor de Manaus no momento do registro do satélite.
Já o bairro Parque 10 de Novembro, uma área de classe média, é o terceiro mais quente de Manaus, com temperatura média da superfície 4,9 °C acima da registrada na área protegida vizinha à cidade. Um ponto vermelho intenso no mapa térmico da InfoAmazonia se concentra em um gigantesco complexo do Carrefour, situado em frente a um grande estacionamento e ao lado da Avenida Mário Ypiranga, uma das mais movimentadas da cidade. O satélite registrou essa área a 35,9 °C — ou seja, 9,5 °C mais quente do que a temperatura na Reserva Adolpho Ducke.
“Mesmo acostumado, é difícil”, diz Luan Albuquerque da Silva, que trabalha em uma barraca de lanches em frente ao estacionamento do Carrefour, sobre o calor da cidade. Enquanto falava, limpava o suor da testa com um guardanapo. “O pessoal fica passando mal”, completa.
A solução verde
Em outras partes do bairro Parque 10 de Novembro, há um efeito de resfriamento das árvores. A região do Igarapé do Mindú, por exemplo, é margeada por um raro corredor verde no bairro. Ali, a temperatura da superfície caiu para 28,2 ºC. Para comparação, a apenas alguns quarteirões dali, a rua Silva Alvarenga em Parque 10, sem árvores, registrou 33,8 graus — 7,4 ºC mais quente que a Reserva Adolpho Ducke.
De forma semelhante, em Belém, nossos dados mostram que as ilhas de calor urbanas podem ser amenizadas e até erradicadas com arborização. No bairro do Guamá, o mais populoso da cidade, o Cemitério Santa Izabel é uma ilha arborizada em um mar de concreto. Dentro dos portões do cemitério, a temperatura da superfície é apenas 2ºC acima da APA ao lado da cidade. Mas, a poucos quarteirões dali, as árvores somem e o efeito da ilha de calor urbana sobe para 6ºC.
“Precisamos entender que o ambiente urbano é um ambiente degradado”, explica Arruda. “Há problemas com o solo, com as altas temperaturas, tanto no solo quanto pela falta de sombra e proteção para as plantas”.
Salomão, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, afirma que, em um ambiente urbano, é preciso considerar “muitos parâmetros”.
“Se a via é estreita, há limitações. Se existe a rede elétrica, é outra. Ou ainda a rede subterrânea de cabos e encanamentos… tudo isso interfere”, explicou.
O especialista ressalta, no entanto, que a Amazônia abriga mais de 16 mil espécies diferentes de árvores — o que significa que há espécies apropriadas para praticamente qualquer situação. “É preciso pensar a arborização de forma específica para cada local, e não, por exemplo, sair plantando mangueiras em todas as ruas”. Segundo análise de Salomão, apenas 4,1% das árvores em Belém são espécies nativas da Amazônia.
Em nota, a SEMMA de Belém afirmou que, no início deste ano, a Prefeitura recuperou a Granja Modelo, uma área fora da cidade destinada à produção de mudas nativas que serão utilizadas na arborização urbana.
Recentemente, a política de arborização de Belém viralizou após a prefeitura instalar “árvores artificiais” em um novo parque construído para a COP30, no bairro do Reduto — o que possui a menor cobertura vegetal da cidade, segundo análise da InfoAmazonia. As estruturas, agora rebatizadas pela prefeitura como “jardins suspensos”, são metálicas, em formato de árvore, e sustentam diversos vasos de plantas no lugar da copa. A medida foi amplamente ridicularizada nas redes sociais, com muitas pessoas apontando a ironia de a cidade anfitriã, em plena Amazônia, de uma conferência climática internacional, optar por réplicas de árvores em vez das naturais.
A prefeitura alegou que não havia espaço suficiente para raízes ou solo na área para sustentar árvores de verdade. Salomão rebate: “quem tem 16 mil espécies, tem espécies para tudo”. “Agora, se não pode fazer ainda, você pode pensar em vasos grandes”.
Mas Belém também está plantando árvores de verdade, tanto no parque quanto em outras áreas da cidade. No início deste ano, a prefeitura anunciou um plano para plantar 17 mil mudas de espécies nativas em toda a cidade, com o objetivo de torná-la a “capital mais verde do Brasil”.
A SEMMA de Belém informou à InfoAmazonia que, até o momento, já plantou 7 mil mudas como parte dessa iniciativa. Já a Prefeitura de Manaus anunciou que plantará 15 mil mudas em toda a cidade ao longo de 2025. A SEMMA de Manaus, porém, não respondeu a uma lista de perguntas enviada pela InfoAmazonia.
Os defensores da arborização urbana dizem que já ouviram promessas como essas antes. “Tanto os órgãos públicos, quanto organizações não-governamentais, quanto simpatizantes de arborização, quanto políticos em campanhas eleitoreiras, começam a plantar [as árvores]. Mas eles não monitoram [o crescimento]. Não adianta nada. Dinheiro jogado fora”, diz Arruda, acrescentando que, muitas vezes, as árvores morrem rapidamente sem o acompanhamento do poder público.
Em vez de só plantar mais mudas, os especialistas defendem que as prefeituras escolham cuidadosamente quais serão as espécies a serem cultivadas, com investimento para ajudar no crescimento das árvores mesmo após o plantio.
Tudo isso é caro, mas dado o impacto enorme no clima urbano, valeria a pena, avalia Salomão: “o retorno é muito maior”.
Crédito: Nicholas Miller*
Foto: Nicholas Miller/InfoAmazonia
Via InfoAmazônia