João Baptista Herkenhoff: A vocação de cada um
Cada pessoa é destinada a colocar um tijolo na construção do mundo. A vocação é essencial em qualquer atividade.
Etimologicamente, vocação vem de chamar, invocar. Pelo caminho da Etimologia veremos na vocação um chamado.
Pode parecer, à primeira vista, que determinadas profissões não exigem vocação, ou seja, podem ser desempenhadas por qualquer pessoa, indiferentemente.
Não concordo que determinados ofícios sejam excluídos do rol dos que exigem vocação. Vou dar um exemplo muito simples, porém expressivo.
Observemos a conduta de coveiros no ato de sepultar seres humanos. Chama nossa atenção algumas vezes o ar circunspecto, de profunda interiorização espiritual, revelado na face daquele ser humano que coloca na sepultura o corpo de outro ser humano. Coveiros que testemunham no semblante a importância do que fazem, que emprestam ritual na maneira como realizam sua tarefa têm vocação para o ato de conduzir alguém a sua última morada.
É relevante o trabalho dos coveiros.
Imaginemos o transtorno social que uma greve de coveiros causaria. Aliás, uma suposta greve de coveiros foi o tema de um conto premiado do escritor paulista Hildebrando Pafundi. Nesse conto, a greve não ocorreu porque o fim do movimento foi decretado antes de sua deflagração, justo na véspera do dia em que, na pequena cidade onde transcorre o enredo, faleceram cinco pessoas.
Como muito bem colocou Ingrid Dalila Engel,
“Quando o nosso projeto de vida é traçado, um dos pontos mais significativos é a escolha da área profissional.”
As dificuldades enfrentadas pelos jovens na escolha de uma profissão decorrem, em grande parte, das incertezas do próprio mundo contemporâneo.
Como bem colocou Sílvia Regina Rocha Brandão:
“A sociedade contemporânea revela muita insegurança e incerteza quanto a valores: não há pontos de referência estáveis. Isto torna muito difícil para o homem atual identificar o que vale a pena.”
Assentado que toda profissão requer vocação, o que é a vocação na magistratura?
A vocação na magistratura é alimentada por uma paixão.
Ser juiz não é realizar um trabalho burocrático que se resumiria em comparecer ao fórum, cumprir um expediente, realizar audiências, voltar para casa levando quase todo dia processos para decidir e, no fim do mês, receber um salário razoável, ou até mesmo um salário que pode ser considerado bom, principalmente em cotejo com os rendimentos da maioria das pessoas, mesmo aquelas portadoras de curso superior.
Ser juiz é muito mais que isto.
Vejo o juiz como alguém cujo papel é estar a serviço. Que não ocupe apenas um cargo, mas desempenhe uma missão. Sem prerrogativas e vantagens pessoais.
Boas leis são importantes para que o país progrida e o povo seja feliz.
A lei como instrumento de limitação do poder é um avanço da cultura humana.
Mas da nada valem boas leis nas mãos de maus juízes.
A tábua de valores de uma sociedade não está apenas na lei. Está bem mais que isso na substância moral dos aplicadores da lei.
Como ponderou Lucas Naif Caluri, em texto que faz parte de uma obra coletiva:
“Vários são os requisitos éticos exigidos dos magistrados, dentre os quais podemos citar: a imparcialidade, a probidade, a isenção, a independência, a vocação, a responsabilidade, a moderação, a coragem, a humildade, dentre outros.”
Há um elenco de profissões nas quais prepondera o humanismo como horizonte inspirador.
Se em todas as profissões deve haver traço humano, em algumas profissões o traço humano deve ser a estrela-guia.
Incluo a Magistratura, ao lado da Medicina, como tarefa na qual o Humanismo é condição sine qua non do exercício profissional.
Se o Humanismo deve ser o norte a guiar o magistrado, o princípio da dignidade humana deve ser a referência fundamental a orientar os julgamentos. Não há Direito, mas negação do Direito, fora do reconhecimento universal e sem restrições do princípio da dignidade da pessoa humana.
Somente a Constituição Federal de 1988 abrigou expressamente, no seu texto, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Mas ainda que a Constituição não explicitasse esse princípio, ele teria de ser afirmado, especialmente pelos juízes, porque o princípio da dignidade da pessoa humana está acima da Constituição e das leis. Integra aquele elenco de valores que a doutrina chama de metajurídicos.
O zelo pela dignidade humana é a tarefa que melhor singulariza a vocação do magistrado.
Recuso a fria denominação de partes para denominar as pessoas que buscam a prestação jurisdicional.
Aqueles que comparecem em Juízo pedindo Justiça não são partes, são pessoas, e como pessoas devem ser compreendidas e ouvidas.
João Baptista Herkenhoff
Juiz de Direito aposentado (ES),
palestrante,escritor,
um dos fundadores e primeiro presidente da
CJP da Arquidiocese de Vitória
Email – jbpherkenhoff@gmail.com