O céu pode esperar

Arte: JBosco

O inocente joguinho de dominó na porta da baiuca do sambista da velha guarda Paulino, no Laguinho, na Macapá dos anos 1970, escondia o carteado a dinheiro alto que corria solto nos fundos do bar, com vaivém de apostadores nos finais de tarde. Sem neon ou milionários por perto, o cassino improvisado nem de longe lembrava um braço da fosforescente Las Vegas, mas os frequentadores da jogatina eram remediados. Havia advogados, médicos, jornalistas e renitentes jogadores com algum dinheirinho guardado para perder na canastra real.

Os tipos que entravam e saíam da parte proscrita do bar nada tinham de playboys com o bolso abarrotado de dólares para três noitadas movidas a caros uísques, belas mulheres e limusines à porta. Nem o dono da jogatina lembraria um engravatado crupiê da miragem do deserto de Nevada, aquele profissional encarregado de pagar os ganhadores no salão de pôquer & Cia. Os apostadores eram gente simples e o chefão do cassino, nem se fala.

Afrodescendente de escravos que construíram no século 18 a Fortaleza de São José de Macapá para proteger a foz do rio Amazonas, o crupiê macapaense era um contador de histórias do samba e boemia da cidade antiga. Não à toa, de vez em quando, enquanto atravessava a fronteira que separava o dissimulado dominó da contravenção perpetrada na reservada, ele ensaiava um miudinho, para arrancar o sorriso de algum freguês.

Dele conta-se até hoje imenso repertório de histórias engraçadas de sua esperteza para os negócios, com jeitinho brasileiro embutido na argumentação. O elenco de contadores de anedotas com o nome de Paulinho é vasto em Macapá – e capaz de fazer a plateia rir por horas.

Certa vez ele tinha um terreno para vender. 20 por 30. Colocou placa de venda no bar e não demorou a achar comprador. Negócio no escuro, sem ver o imóvel, o cliente pagou à vista, mas voltou dias depois para reclamar da metragem.

– Seu Paulino, eu meti a trena no terreno e estão faltando dois metros de cada lado.

– Me admiro do senhor vir me ofender com dois palmos de terra. O senhor já olhou pra cima o que não te cobrei? – respondeu, apontando o céu por testemunha e limite para o quadrilátero vendido.

A dissimulação é narrada na cidade com condescendência e jogada na conta dos pecados veniais do personagem macapaense, comparável ao mais famoso personagem da grande comédia de Molière, porém sem a desonestidade intencional de Tartufo.

A arte de representar em Paulinho e o trocadilho sem brilho com o título de um filme de antigamente para sugerir o infinito no terreno vendido me remetem a uma edição de 1979 da revista de humor Mad. A publicação tirou o maior sarro do ator Warren Beatty, aspirante ao Oscar com a comédia “O céu pode esperar”, que não levou a estatueta para casa. A capa de Mad, com caricatura de Beatty, devastado, dizia “O ‘seu’ pode esperar”.

O Oscar de Paulino, também. Do cronista, idem.

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Euclides Farias é cronista e jornalista, 59 anos de idade e 40 de profissão exercida nos jornais Marco Zero (AP), O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados (ANDA), Rádio Cultura, Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde. É editor de coluna no Diário do Pará.

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